terça-feira, 24 de novembro de 2015

Direitos Humanos: onde estão depois de 13 de Novembro?

É tempo de lutar contra o que nos diminui como humanos; é tempo de lutar pelos Direitos que nos engrandecem. Parafraseando A Marselhesa: “Aux Droits citoyens!”.

Nós europeus temos sido sistematicamente convidados e instigados a olhar para fora da Europa com olhares diferentes dos habituais. Muitos séculos se passaram em que a Europa olhou para o resto do mundo a partir de cima, com “supervisão” e com superioridade. Olhamos, no passado os outros povos como não civilizados, incultos e, sobretudo, como manipuláveis para nos darem ou venderem barato aquilo que precisávamos. Olhando para este cenário sem cosméticas – isto é, arrumando de vez a retórica do “esforço civilizacional”, do encontro de culturas, da ajuda desinteressada e da promoção do desenvolvimento – verificamos que a Europa na grande maioria dos casos se serviu mais do mundo e lhe impôs o seu poder e a sua cultura do que o contrário. Se dúvidas houver sobre este assunto basta consultar, por exemplo, as raízes históricas do conflito da Síria e perceber quanto os interesses europeus contribuíram para armar uma situação explosiva e aparentemente irresolúvel.

A Europa constitui-se assim como parte importante e responsável em conflitos onde povos antes subjugados se revoltam e se organizam para originar sofrimento: historicamente – repito historicamente – a Europa não é alheia às decisões que conduziram a grande parte dos conflitos regionais que se desenrolam na atualidade. Mas, ao mesmo tempo que é preciso conhecer, aceitar e lidar com estas responsabilidades, é importante também reconhecer como floresceu na Europa uma ética nunca antes vista na história da Humanidade sobre a dignidade humana. Podemos dizer – e certamente com razão – que esta ética foi criada de forma limitada: quando a Europa falava de “Homem” queria efetivamente dizer “Homem Europeu”. Mas o certo é que mesmo com um carater mais restrito, a Europa teve um papel decisivo para entender a dignidade humana tal como hoje a consideramos.

É necessário lembrar um período fertilíssimo do triunfo desta ética humana que se verificou em 12 anos no final do século XVIII. Neste período são proclamados quatro documentos fundamentais. Em 1776 a Declaração de Independência dos Estados Unidos da América em que se consigna o “direito à vida, à liberdade e à busca da felicidade”. Como é sobejamente conhecido esta declaração apesar de ter sido proclamada nos Estados Unidos é de inspiração dos iluministas franceses. Mas há mais: em 1787 no preâmbulo da Constituição dos Estados Unidos definem-se os direitos básicos dos cidadãos. Dois anos mais tarde, em 1789 a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão em França, estabelece a seminal trilogia que guiaria a Revolução Francesa: Igualdade, Fraternidade e Liberdade. Finalmente em1791 a Lei dos Direitos dos Estados Unidos limita formalmente os direitos do Estado e assume a proteção dos direitos dos cidadãos. Muito se tem discutido sobre as razões do aparecimento tão concentrado e veemente destas declarações. Certamente as classes sociais que tinham ascendido ao poder necessitam de criar uma ética nova que não fosse coincidente ou mesmo inspirada nas éticas das classes que tinham sido derrotadas nomeadamente o Clero. Os direitos do Homem e do Cidadão surgem assim como uma dignificação da pessoa enquanto existência laica e não enquanto criação divina.

Estes documentos são certamente a base conceptual e ética que conduziram, mais de 150 anos mais tarde, à proclamação da Declaração Universal dos Direitos do Homem feita a 10 de Dezembro de 1948 (prestes, portanto, a completar 67 anos).

Os acontecimentos de 13 de Novembro deste ano de 2015 em Paris não podem deixar de nos interrogar sobre este percurso de mais de 200 anos dos Direitos Humanos. Como primeira reflexão não é indiferente nem certamente por acaso que estes acontecimentos se desenrolem em Paris. Muito recentemente assistimos ao assassinato de jornalistas do Charlie Hebdo e agora somos confrontados com os atentados de 13 de Novembro. Não é Paris por acaso. Paris tem, historicamente, um protagonismo na afirmação de Direitos Humanos que são para os jihadistas o alvo principal a abater. Os Direitos Humanos são o grande inimigo destes grupos. Antes de mais porque são laicos, depois porque proclamam que “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Dotados de razão e de consciência devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade” (art.º 1 da DUDH). Na verdade nada mais incompreensível para os radicais religiosos para quem a liberdade é uma ilusão e uma armadilha ocidental e a fraternidade um valor secundário quando comparado com a vingança.

Estes atentados em Paris e o clima de medo que pretendem instalar em toda a Europa são mais um teste de resistência aos Direitos Humanos. E certamente nos vão mostrar as suas forças e as suas fraquezas. Vemos até ao presente que os Direitos Humanos são muito vulneráveis: estas ameaças estão em vias de reduzir a nossa liberdade, a nossa possibilidade de circulação, a hipertrofia do controle e da securitização do Estado. Não é ficção pensar que nos podem levar a curto prazo a restrições na liberdade de expressão e outras que lhe estão associadas. Estes atentados mostram as fragilidades dos Direitos Humanos face aos seus inimigos. Mas esperamos também que realcem a vitalidade dos Direitos Humanos, que mostrem que podemos e devemos continuar a lutar por uma sociedade de liberdade, mais igualitária e mais fraterna. A Europa cometeu muitas injustiças com outros povos do mundo mas a verdade é que teve o tempo, a lucidez e a humildade para reconhecer os seus erros e para fundar uma nova ética de relacionamento. Diríamos aos europeus e aos não europeus: Não é tempo de conduzir o automóvel a olhar para o retrovisor. É tempo de lutar contra o que nos diminui como humanos; é tempo de lutar pelos Direitos que nos engrandecem. Parafraseando A Marselhesa: “Aux Droits citoyens!”.

Por: David Rodrigues

Professor Universitário, Conselheiro Nacional de Educação

AS PALAVRAS QUE OFENDEM



Na verdade, para além das expressões citadas remetendo para o universo da deficiência, são também usados com demasiada regularidade termos próprios da área da saúde mental, esquizofrenia ou autismo, por exemplo, para adjectivar comportamentos e discursos em particular na vida política.

Dito de outra maneira, a condição de deficiência ou de doença mental é utilizada como insulto sendo que este comportamento é recorrente mesmo em pessoas com responsabilidade de natureza pública e social de relevo o que agrava o seu já inaceitável uso.

Sem querer assumir uma posição "politicamente correcta" este uso e abuso incomoda-me. Creio que que ignora e ofende o sofrimento das pessoas e das famílias que lidam com quadros clínicos, de desenvolvimento ou de funcionalidade desta natureza.

No entanto, este é apenas mais um exemplo das palavras que ofendem e que tão frequentemente ouvimos.

Texto de Zé Morgado

DEFICIÊNCIA E INDEPENDÊNCIA, UMA QUESTÃO DE DIREITOS



Esta iniciativa da Câmara de Lisboa merece registo e vai ao encontro de algo que movimentos e organizações como os (d)Eficientes Indignados, têm vindo a exigir, o respeito pela autonomia e direitos individuais e sociais das pessoas com deficiência, designadamente, o direito à independência e autodeterminação.

Uma breve nota.

A política social dos últimos anos pode, também, sintetizar-se da seguinte forma, cortes brutais nos apoios às pessoas, às famílias, Rendimento Social de Inserção, subsídio de desemprego, abono de família, etc., e aumento dos apoios às instituições que operam no sector social.

Para quem nos governa os pobres ou pessoas com deficiência não são capazes de tomar conta de si próprias, precisam sempre da tutela cuidadora de uma instituição. Uma versão enviesada de um estado social.

Com este entendimento, a título de exemplo e como alguns trabalhos têm evidenciado, o Estado prefere entregar a uma instituição uma verba para alimentar uma família numa cantina social superior à verba que essa família recebe em Rendimento Social de Inserção.
Como é evidente as instituições agradecem, as pessoas comem mas ... não se libertam da pobreza e da dependência.

Situação semelhante se passa no universo das pessoas com deficiência existe o mesmo problema que tem motivado uma luta importante por parte das pessoas com deficiência.
De facto, o estado subsidia as instituições para apoio a deficientes em 951€ mais uma parte dos rendimentos dos cidadãos institucionalizados mas não apoia as próprias pessoas que poderiam encontrar por sua iniciativa respostas e, provavelmente, com menores custos. Os cidadãos com deficiência exigem também assumir a decisão sobre a escolha do seu cuidador(a) dada a natureza da relação que se estabelece.

Mas é esse o entendimento subjacente a boa parte das políticas sociais, os pobres, tal como as pessoas com deficiência, não sabem tomar conta de si, precisam sempre da presença de uma instituição prestadora de cuidados, não são autodeterminadas, independentes.

Como é evidente, este discurso não pretende tornar dispensáveis as instituições, são necessárias particularmente em situações de crise ou de problemáticas mais severas, mas, simplesmente, de defender que as pessoas, muitas delas, são capazes de tomar conta de si próprias, incluindo a gestão dos apoios que a sua situação possa justificar.

No fundo, é, simplesmente, uma questão de direitos individuais e sociais.

A iniciativa da Câmara de Lisboa, hoje referenciada no Público, vai no caminho certo, o respeito pela autonomia e direitos individuais e sociais das pessoas com deficiência, designadamente, o direito à independência e autodeterminação.

Texto de Zé Morgado

OS DIREITOS DA CRIANÇA, A AGENDA POR CUMPRIR

No calendário das consciências está hoje registado que em 20 de Novembro de 1959 a Assembleia Geral das Nações Unidas proclamou a Declaração dos Direitos da Criança. É verdade que nestes 56 anos, pensando sobretudo na realidade portuguesa, muito evoluímos também no que respeita ao universo dos mais novos. No entanto, os Direitos da Criança continuam uma agenda por cumprir para muitos milhares por variadíssimas razões.

Cheguei há minutos de um evento alusivo, claro, organizado pela Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Protecção de Crianças e Jovens para o qual recebi um gentil convite e a conclusão … continua por cumprir a Convenção tendo-se debatido sobretudo a participação e falta de voz de crianças e jovens.

Os ventos malinos que sopram e o enorme conjunto de dificuldades que atravessamos, ancorados num quadro de valores que tende a proteger mercados e interesses outros que conflituam com os interesses e bem-estar da maioria das pessoas vão criando exclusão, pobreza e negação de direitos. Aliás, é cada vez mais frequente a afirmação de que os direitos devem ser entendidos como sendo de geometria variável, ou seja, dependem da conjuntura económica pelo que os que menos têm também terão os seus direitos diminuídos.

Neste cenário, conforme os estudos e a experiência mostram, os mais novos constituem um grupo especialmente vulnerável.

Nesta vulnerabilidade existem três áreas em que me parece que os direitos estão particularmente ameaçados, as crianças e adolescentes em risco de maus tratos, abusos e negligência, a pobreza infantil e o direito à equidade nas oportunidades de acesso à educação de qualidade para todas as crianças, sublinho, TODAS as crianças.

De uma forma geral, os discursos e a retórica política sempre acentuam a importância destas matérias mas é preciso ir um pouco mais longe. Por exemplo, dotar as Comissões de Protecção de Crianças e Jovens dos meios suficientes e qualificados para a detecção e acompanhamento eficaz dos casos de risco, ou caminhar no sentido de diminuir o número de crianças institucionalizadas e sem projecto de vida.

No que respeita aos risco de pobreza, as crianças são como que o elo mais fraco de uma sociedade com um fosso demasiado grande entre os mais ricos e os mais pobres, cerca de dois milhões em risco. As políticas sociais não podem deixar de entender como prioritário, sobretudo nos tempos que atravessamos, os apoios sérios e fiscalizados aos problemas das famílias que envolvem, necessariamente, os mais novos. É o seu futuro que está em causa.

No que respeita à educação, a equidade e a tentativa de que todos atinjam o patamar possível de sucesso educativo e qualificação é o grande desafio. Os discursos políticos nunca esquecem o grande desígnio da educação ou a paixão pela educação. Precisamos de caminhar de forma séria e não tentados pela sedução do sucesso estatístico, para a qualidade dos processo educativos que se traduz nos níveis de qualificação das pessoas (não da simples certificação), na diminuição das taxas de abandono e insucesso, enfim, na construção de projectos de vida viáveis e bem-sucedidos. Muitas crianças e adolescentes com necessidades especiais vêem atropelados os seus direitos a dimensões básicas da qualidade de vida, a educação, por exemplo.

Continuamos com uma agenda por cumprir em matéria de bem-estar dos mais novos.

Texto de Zé Morgado

O que torna os professores fortes

A formação em serviço tem passado quase sempre ao lado das reais necessidades dos professores e das reais necessidades das escolas.

António Sampaio da Nóvoa publicou em 1987 um ensaio notável e seminal sobre “O tempo dos professores” (Le temps des professeurs: analyse socio-historique de la profession enseignante au Portugal (sec. XVIII – XX). Trata-se de um livro de leitura indispensável que, além de traçar a evolução da profissão docente ao longo de 300 anos, mostra como os professores surgiram e como à custa de longos e penosos processos se puderam afirmar como uma classe profissional indispensável ao(s) desenvolvimento(s) humano(s).

Mesmo recentemente não deixaram de aparecer duvidas sobre o carácter imprescindível da profissão de professor. Lembro, por exemplo, que quando surgiram as primeiras e desastradas experiências de introdução das Tecnologias Digitais na Educação, havia teóricos que profetizavam o desaparecimento a curto prazo dos professores porque seriam substituídos (e segundo eles com vantagem) pelos computadores. Dizia-se para anunciar o “admirável mundo novo” dos computadores na Educação que eles eram mais pacientes que os humanos (aqui havia uma incompreensível confusão entre ser paciente e ser repetitivo…), os computadores eram mais disponíveis, mais versáteis, etc. O certo que cedo se verificou que todas estas vantagens eram inúteis se não existisse um professor que contextualizasse as aprendizagens, que explicasse as suas dificuldades e implicações, um professor, enfim, que falasse humanamente com os alunos. Assistimos ainda hoje a outras tentativas e subalternizar o papel dos professores. Darei outro exemplo: há países em que as entidades responsáveis pela Educação compram a empresas privadas o currículo, os materiais, os livros e mesmo a supervisão do processo educativo. Este “franchising” educacional leva a que o professor se converta num mero “entregador” do currículo, tendo somente seguir e cumprir rigorosa e atempadamente os planos que a empresa fez para ele. Tem-se chamado a este modelo de “currículo à prova de professor”. Segundo o modelo planeado, o modelo só pode não funcionar se o professor não cumprir obedientemente os ritmos, os conteúdos planeados e não usar os materiais que lhe são fornecidos.

Muito mais exemplos poderiam ser dados de tentativas (felizmente mal sucedidas) de substituir o professor, de acabar este “Tempo dos Professores” com lhe chamou Sampaio da Nóvoa. O facto destes exemplos caricaturais terem sido desmontados não deve esmorecer a nossa vontade de encontrar respostas para a questão de “Como se pode reforçar e valorizar o trabalho dos professores?”

Os últimos anos de governação em Portugal foram um verdadeiro laboratório sobre como retirar relevo e autonomia aos professores. Muitos aspectos se poderiam evocar mas referir-nos-emos a três que nos parecem mais importantes:

Os professores tornam-se mais fortes quando se reforça a autonomia e a possibilidade de gerirem o seu trabalho pedagógico. Isto quer dizer que currículos extraordinariamente extensos e complexos vão “engessar” o professor e retirar-lhe tempo e disponibilidade para usar com os alunos outros métodos que não sejam os estritamente transmissivos. Com currículos destes escasseia tempo para que os alunos aprendam a resolver questões em grupo, para apoiar os alunos que “descolem” da “velocidade de cruzeiro” a que são transmitidos os currículos e não permite qualquer veleidade de interdisciplinaridade ou mesmo de aplicação a contextos reais. A tão criticada opção governamental de reforçar os exames faz parte deste problema: as escolas usam a desculpa dos exames para justificarem práticas ainda mais tradicionais e conservadoras no seu trabalho pedagógico.

Em segundo lugar não se desenvolveram modelos que incentivem, encorajem e recompensem o trabalho cooperativo dos professores. Sabe-se hoje que um professor que trabalhe sozinho tem uma enorme probabilidade de ser incompetente dado que os problemas que se lhe deparam são de tal complexidade que só em colaboração com outros docentes e mesmo outros técnicos é possível encontrar respostas adequadas. A organização da escola, a avaliação dos professores, o modelo de resolução de problemas na escola passa sempre por um professor solitário, e único responsável por assuntos em que na verdade ele não é capaz de resolver sozinho.

Por fim, precisamos de professores apoiados. A formação em serviço precisa de ser reconceptualizada para que possa desempenhar o papel fundamental de inovação e de supervisão do trabalho docente. A formação em serviço tem passado quase sempre ao lado das reais necessidades dos professores e das reais necessidades das escolas. Precisamos de professores apoiados e, assim sendo, fortalecidos para enfrentar os complexos problemas do quotidiano escolar.

Hoje, como antes, estamos - como escreveu Sampaio da Nóvoa - o tempo dos professores. Não dos professores, sozinhos, dos professores sabe-tudo, mas no tempo de uma classe profissional que tem cada vez mais de entender como se convence e seduz os alunos para a importância do conhecimento, da inovação e da pesquisa. Mas também como é que se chega a estes objectivos usando valores e práticas que sejam humanas, solidárias e participativas. É este o tempo presente dos professores.

Por: David Rodrigues

Presidente da Pró-Inclusão / Associação Nacional de Docentes de Educação Especial,Conselheiro Nacional de Educação

terça-feira, 3 de novembro de 2015

NÃO SEI FAZER OS TPCs, A MINHA MÃE TAMBÉM NÃO E O MEU PAI NÃO ESTÁ

No Observador surge um trabalho centrado num tema recorrente mas, também, sempre oportuno, os trabalhos escolares para casa, os velhos TPCs. A peça de decorre de uma situação em Espanha que vale a pena ler. Por me parecer oportuno deixo aqui um texto que em 2014 coloquei no Público sobre esta matéria.

“Com alguma periodicidade reentra na agenda a questão dos trabalhos escolares realizados em casa, os míticos TPCs. Trata-se de uma matéria controversa patente nos discursos e práticas das escolas e também nas opiniões de pais e encarregados de educação.

A OCDE divulgou um relatório interessante, "Does homework perpetuate inequities in education?" produzido com base em dados recolhidos no âmbito do PISA (Programme for International Student Assessment) nos anos de 2003 e 2012).

Os alunos portugueses de 15 anos, dado de 2012, gastam em média 4h semanais na realização de trabalhos de casa, menos uma hora que em 2003 e menos uma hora que a média dos 38 casos estudados pela OCDE. Do meu ponto de vista, os dados mais relevantes deste relatório remetem para o facto de que os alunos com famílias de meios sociais e económicos mais favorecidos gastarem mais 2 horas em trabalhos de casa que os seus colegas com famílias de estatuto mais baixo o que, sublinha a OCDE, poderá alimentar a falta de equidade.

Neste contexto, parece-me pertinente recordar que o nível de escolaridade dos pais, em Portugal em particular da escolaridade da mãe conforme dados recentemente divulgados, é um fortíssimo preditor do sucesso escolar dos filhos. Aliás, recorrendo aos "rankings escolares" recentemente elaborados, (relativos a 2014), no caso pelo Expresso, verifica-se que na escola pública melhor colocada, a Raul Proença, nas Caldas da Rainha, a média das habilitações das mães é de 12 anos que tem 8,6% dos seus alunos oriundos de famílias carenciadas apoiados no 1º escalão da acção social escolar. Por outro lado, na escola Secundária de Resende, que apresenta a média mais baixa nos resultados, 7,3 valores, as mães dos alunos têm, em média, apenas o ensino primário completo, 5,1 anos de estudo, e tem no escalão mais carenciado 30% dos alunos. Estes dados sustentam o entendimento de que os trabalhos de casa correm o sério risco de alimentar desigualdade de oportunidades e obriga-nos a reflectir sobre a sua utilização.

Alguns mais atentos a estas matérias recordarão que em França, creio que em 2012, François Hollande expressou a intenção de abolir os TPCs. Aliás, é curioso que desde 1956 foi determinada a sua não utilização no ensino primário francês, embora muitas escolas os continuem a prescrever.

Também em França e na mesma altura se noticiou um apelo realizado pela Fédération des Conseils de Parents d'Élèves (FCPE) e pelos professores representados pela organização Institut Coopératif de l'Ecole Moderne (ICEM) de França, no sentido de se boicotar a feitura dos trabalhos de casa, prescritos por muitos professores apesar de formalmente já eliminados, como referi. Os pais consideravam os TPCs "inúteis" e "cansativos", "empurrando a responsabilidade de ensinar para cima dos pais". A mesma situação que ocorre em Espanha e retratada na peça do Observador.

Os professores entendem que os trabalhos de casa aumentam as desigualdades entre as crianças uma vez que "Nem todas as famílias têm tempo ou conhecimentos suficientes para ajudar os seus filhos".

Parece-me também importante o facto de que no nosso sistema educativo os alunos do 1º, 2º e 3º ciclo podem passar 8 ou 10 horas diárias na escola considerando o tempo lectivo, as Actividades de Enriquecimento Curricular e a Componente de Apoio à família, (no limite algumas crianças poderão estar 55 horas semanais na escola, uma enormidade). Este tempo de permanência na escola é um dos mais longos dos países da OCDE. Acresce que em muitas circunstâncias, muitos alunos têm ainda Trabalhos Para Casa que, nas mais das vezes, são a continuação ou a réplica de trabalhos escolares, ou seja mais do mesmo.

Não tenho nenhuma posição fundamentalista mas creio que deve distinguir-se com clareza o Trabalho Para Casa e o Trabalho Em Casa. O TPC é trabalho da escola feito em casa, o trabalho em casa será o que as crianças podem fazer em casa que, não sendo tarefas de natureza escolar, pode ser um bom contributo para as aprendizagens dos miúdos. O que acontece mais frequentemente é termos Trabalhos Para Casa e não Trabalho Em Casa.

Os TPCs clássicos têm ainda o problema de colocar com frequência os pais em situações embaraçosas, querem ajudar os filhos mas não possuem habilitações para tal. A propósito, numa reunião de pais em que participava e se discutia esta questão, dizia uma mãe, “o senhor, da maneira que fala, se calhar é capaz de ajudar o seu filho, mas na minha casa, chora a minha filha e choro eu, ela porque quer ajuda, eu porque não sou capaz de lha dar.” Colocar os pais nesta posição parece-me inaceitável.

Torna-se, pois, necessário que professores e escolas se entendam sobre esta matéria, diferenciando trabalho de casa, igual ao da escola, de trabalho em casa, trabalho em que qualquer pai pode, deve, envolver-se e é útil ao trabalho que se realiza na escola, como, aliás, refere a organização francesa dos pais e a dos professores que apelaram ao boicote aos TPCs.

Se mesmo assim houver a tentação do trabalho de casa, deveria estar assegurado que a criança tem capacidade e competência para o realizar autonomamente, por exemplo, o treino de competências adquiridas. Na verdade, porque milagre ou mistério, uma criança que tem dificuldade em realizar os seus trabalhos na sala de aula, onde poderá ter apoio de professores e colegas, será capaz de os realizar sozinha em casa? Naturalmente tal só acontecerá com a ajuda dos pais ou, eventualmente, de "explicadores" a que muitas famílias, sabemos quais, não conseguem aceder.

No entanto, do meu ponto de vista, sobretudo nas idades mais baixas, o bom trabalho na escola deveria dispensar o TPC. É uma questão de saúde e qualidade de vida.

Parece ainda de sublinhar que os estudos sugerem que "é sobretudo a qualidade das aulas, mais do que o tempo global de aprendizagem que está associado ao sucesso na aprendizagem. Aliás, neste relatório da OCDE também se conclui que não há uma relação significativa entre o número médio de horas gastas nos TPCs e os resultados escolares.

Citando o relatório, "But PISA also finds that the average number of hours that students spend on homework or other study set by teachers tends to be unrelated to the school system’s overall performance. This implies that other factors, such as the quality of instruction and how schools are organized, have a greater impact on a school system’s overall performance."”

Texto de Zé Morgado

Ministério da Educação: o(a) senhor(a) que se segue…

Entramos na era “pós-Crato”. O ministro responsável pelas opções educacionais nos últimos quatro anos foi substituído e tomou já posse a nova ministra da Educação ainda que não saibamos, dada a complexa conjuntura política que vivemos, porquanto tempo exercerá ela o cargo.

Estas mudanças são sempre portadoras de uma expectativa esperançosa. A actual ministra (ou quem lhe vier a suceder) que educação encontrará e qual será o alcance da sua intervenção? Num país como o nosso, integrado num espaço geoeconómico com fortes linhas de organização e de harmonização entre os membros da comunidade a que pertencemos, é impensável que qualquer novo responsável prometa (e sobretudo possa cumprir) mudanças coperniquianas no sistema de ensino. Quando se analisam longitudinalmente as políticas educativas seguidas nos últimos anos encontramos mais frequentemente continuidades e alternâncias do que rupturas e revoluções. A verdade é que o sistema educativo está de tal forma embutido na vida da sociedade que qualquer mudança mais radical pode entrar em ruptura com a organização da vida e com os valores das famílias e das comunidades. Lembro-me quando trabalhei em projectos europeus na Rússia como qualquer proposta de mudança da escola colidia com a organização de vida das famílias e, logo, tornava estas mudanças irrealizáveis.

A consciência do alcance limitado das mudanças não pode, no entanto, desmerecer a determinação em as realizar. Precisamos de mudanças de política na Educação para que a nossa escola não fique (ainda mais) desfasada das motivações e das necessidades dos alunos. Penso que um ministério pós-Crato terá de encarar três grandes urgências:

1. Precisamos de modificações profundas no currículo. Entendemos aqui currículo de forma restrita, isto é, como o conjunto de conteúdos que se considera essencial que o aluno deva aprender. A modificação do currículo é imperiosa por vários motivos. Antes de mais porque assistimos recentemente a um (ainda maior) estreitamento das aprendizagens. A hipertrofia do Português e da Matemática ocupou o espaço que devia ser de outras aprendizagens e experiências. Falta tempo para explorar a criatividade do aluno, falta tempo para ele conhecer e participar em aprendizagens ligadas ao seu ambiente, falta tempo para ele se comprometer em projectos que tenha motivação de desenvolver. Por outro lado, é necessário um olhar sobre a extensão e complexidade crescente dos currículos. Várias associações profissionais de professores têm apontado a crescente complexidade e extensão dos currículos e há mesmo professores que que consideram que não é possível (mesmo a ritmo de “mata-cavalos”) “dar” todo o programa. E quando se consegue terminar esta corrida ansiosa para “dar” o programa, resta-nos olhar para trás e ver quantos alunos foram vítimas desta corrida desenfreada e tendo descolado não sabemos como os reagrupar. Precisamos ainda de enriquecer o currículo incentivando na escola o desenvolvimento de uma vida cultural em que os alunos tenham acesso aos bens culturais para com eles criarem laços e possibilidades de fruição.

2. Precisamos também de uma intervenção nas escolas. Quem conhece as escolas mais de perto sabe quanto desânimo e cansaço precoce lá se vive. A maneira mais simples de encontrar as causas deste ambiente é culpar os professores. A maneira mais complexa e eficaz é tentar compreendê-los. Compreender significa segundo o provérbio americano “andar nos seus sapatos”. E agora que tanta gente quer dizer aos professores o que devem ensinar, como se devem comportar, que estratégias devem usar, continua a existir muito desconhecimento sobre a pressão, a exigência e o cansaço que provém de estar sozinho dezenas de horas semanais com grupos vibrantes de crianças e jovens. Qual é a resposta que se deu a este acréscimo de exigência sobre os professores? A resposta foi muito mais burocracia para resolver, mais reuniões inúteis, menor participação nas decisões e vida colectiva da escola. A resposta foi, enfim, mais trabalho burocrático e menos oportunidades de uma profissão apoiada, criativa e bem-sucedida.

3. Há ainda um terceiro aspecto que convém recordar a urgência. Precisamos de reforçar a presença da sociedade na escola e da escola na sociedade. Quer isto dizer que, para começar, os pais devem reforçar os seus elos com a escola. Por vezes se fala, e justificadamente, no conservadorismo e radicalismo dos pais face a projectos inovadores que a escola quer desenvolver. Só há uma maneira de atalhar este problema: criar espaços atractivos de diálogo, de troca de planos e acções que permitam um melhor conhecimento mútuo. Muitos pais são conservadores porque nunca conheceram outra escola que não fosse a sua e, por isso pensam que o “antigamente é que era bom”. Trata-se de mobilizar os pais para criar uma escola que seja factor de desenvolvimento do aluno, da família e da comunidade. É ainda importante reforçar a presença da escola na comunidade. Sabemos o quão “romântica” pode parecer esta ideia. Por vezes imaginamos que as comunidades à volta das escolas são receptivas, presentes e dinâmicas e encontramos, pelo contrário, comunidades indiferentes, ausentes e pouco dinâmicas. Assim mesmo, é importante que a escola faça o máximo que puder para não ser um depósito, um gueto na comunidade.

Ernest Hemingway escreveu que “agora é o tempo de usar o que se tem e não de procurar o que nos falta”. Talvez este seja um bom tema para o novo responsável do Ministério da Educação: contar com o que tem. E tem certamente possibilidades de reformar o currículo, de revitalizar a vida nas escolas e de criar condições e incentivos para que a escola se possa embutir nas comunidades onde está.

Os tempos de mudança ressuscitam sempre a esperança que julgávamos adormecida e mesmo inviável. É esta certamente a maior missão de quem encabeçar as políticas educativas nos próximos anos: acordar a esperança que, apesar de ter passado uma má noite, olha expectante o nascer do sol.

Por: David Rodrigues

Presidente da Pró – Inclusão / Associação Nacional de Docentes de Educação Especial. Conselheiro Nacional de Educação.