Quando uma criança nasce, os pais concentram a sua capacidade de amar na preservação do bem-estar físico e emocional dessa criança ao longo dos primeiros anos de vida.
Tradicionalmente contava-se com a ajuda dos mais velhos, no geral os avós, para melhor cuidar desse bem-estar. Com o andar dos tempos o médico, na figura do pediatra, passou também a desempenhar um papel fundamental nessa tarefa.
Hoje, na ausência dos avós e principalmente, na dos próprios pais ao longo de muitas horas do dia, os berçários e as creches, através das suas educadoras, passaram também elas a estar diretamente envolvidas na preservação do bem-estar físico e emocional das crianças que lhe são confiadas.
Assim, cada vez mais prematuramente, os pais confrontam-se com um maior número de pessoas na “criação” dos seus filhos. Pessoas que, não fazendo parte da família, isto é, não partilhando da natural capacidade de amar aquela criança em particular, que antes unificava o cuidar de pais e avós, abrem caminho para a nova preocupação que se instalará pouco a pouco no coração dos pais: educar, preservando ao mesmo tempo o bem-estar físico e emocional da criança.
Se essa preocupação se concentrar essencialmente em formas de estar e fazer que se adeqúem ao espaço físico e humano que rodeia a criança, rapidamente se confronta com exigências de adequação que não só tendem a ser diferentes como antagónicas. O espaço familiar por um lado, o espaço institucional por outro, apresentam à criança um horizonte complexo de estares e fazeres que se lhe impõe em diferentes momentos da sua vida diária, e quase nunca como a melhor forma de preservar o seu bem estar físico e emocional. Imperceptivelmente este vai reduzindo-se face a necessidades adaptativas sucessivas, as quais acabam por se tornar na preocupação dominante do ato de educar.
Daí a pergunta, incómoda para os adultos e assustadora para as crianças, que geralmente culmina ao fim do dia a separação de pais e filhos: "Hoje portaste-te bem?"
Sejamos verdadeiros, quantas vezes essa questão é substituída por qualquer coisa como: "Hoje, sentiste-te bem, tiveste um dia feliz?..."
A educação, enquanto preocupação de ajudar a estar e a fazer adequadamente, mas com base no respeito pelo Ser, preservando-o na sua integridade, torna-se cada vez mais inacessível à natural capacidade de amar dos pais. Não por falta de capacidade de amar, entenda-se, mas pela brutal pressão a que está sujeita por parte de quem “conduz” os caminhos educativos da sociedade atual: a Escola.
A Escola, enquanto instituição, não ama cada criança em particular, não mostra conhecer as necessidades que o crescimento das crianças comporta, não sabe como adequar formas de estar e fazer a essas necessidades. Não sabe nem poderia sabê-lo, a menos que, reconhecendo em boa verdade essa incapacidade, aceitasse com humildade e como meta do seu trabalho aprender a servir o crescer da criança, adequando procedimentos à preservação do seu bem-estar, no lugar de adotar sucessivas políticas “educativas” cada vez mais estranhas e adversas à infância.
Se se compenetrasse em se reconhecer, a Escola adquiriria a consciência de que, com o andar do tempo, indo o bem-estar abrangendo âmbitos cada vez menos visíveis e mais complexos – já não é só físico e emocional, mas também afetivo, ético-moral, espiritual – o resultado do seu trabalho vai deixando marcas profundas nessa progressiva abrangência: mesmo que a Escola o ignore, o bem-estar da criança até à idade adulta vai fertilizando o terreno onde ela vai semear ao longo da sua vida o sentido da existência.
É exatamente por volta dos nove anos que essa complexidade desponta: a criança começa a apreender a qualidade do mundo que a rodeia, vislumbrando a sua verdade. Pela primeira vez vê o que é, despido do véu de encantamento que a infância coloca sobre tudo o que toca. Essa proteção diáfana mas efetiva vai desaparecendo com a proximidade dos nove anos, para dar lugar pouco a pouco a um olhar consciente, obrigando a criança a mergulhar na imperfeição, nos limites e na efemeridade da vida dos homens. O seu mundo de luz dá lugar ao mundo onde a luz e a sombra se confrontam, dando contornos a tudo o que existe. A nitidez desses contornos, adquirindo qualidades morais no crescimento do Ser da criança, é a matéria prima com que ela irá modelar a complexidade do seu bem-estar. No futuro, a sua forma de atuar no mundo emergirá de forma inexorável da qualidade dessa complexidade.
Como se responde a tais necessidades do crescimento nesta idade, para que nela se semeie o garante de um futuro benéfico para a vida?
Ajudando essa nova capacidade de olhar, a ver o que, apesar de tudo, dignifica e engrandece o homem, na sua luta face à imperfeição, aos limites, à efemeridade; a ver a força curativa que, apesar de tudo, emana das coisas belas; a ver a bondade dos homens quando cuidam daquilo que amam; a alimentar enfim uma confiança ilimitada na vida e na humanidade como impulso futuro na defesa da verdade, da bondade e da beleza da Vida que determinará um agir reto no seio social.
Durante o 1.º ciclo (idealmente no sistema do nosso ensino, durante quatro anos) a criança é acompanhada por um adulto que lhe foi abrindo as portas do mundo através de múltiplas experiências e aprendizagens, cujo contributo para o seu crescimento global está grandemente condicionado pela confiança e estima que a criança vai criando dentro de si pelo/a professor/a. Para a criança esse adulto entra na sua ainda curta vida como uma âncora para o resto da sua vida. Porquê? Porque através dela bebe uma visão sobre o mundo, um sentir sobre a vida que, quer se queira quer não, constituem, para além da família, o suporte da edificação moral da criança.
A frase, tantas vezes ouvida da boca das crianças ao longo do 1.º ciclo: “a minha professora é que sabe…”, evidencia a confiança imensa que se espelhará na capacidade de confiança em si própria, para fazer a caminhada da vida que o seu coração acolhe na antevisão do que virá… O adulto que se torna digno da confiança que a criança nele deposita alimenta a sua autoconfiança face à vida.
De uma forma saudável ela aceita tanto os seus elogios como as suas exigências, porque imbuídas de amor e respeito pelo seu Ser. Esse é o cerne da verdadeira autoridade. Quando assim é, a criança aceita-a de uma forma natural, realizando com coragem todas as provas que lhe são pedidas, pois realizá-las por amor transmite-lhe a segurança que necessita para caminhar na vida.
Assim as aprendizagens escolares mergulham no oceano mais vasto e fundo das aprendizagens da vida. Dito por outras palavras, a instrução adquire significado porque serve os desígnios da educação.
Por todas estas razões e outras que não cabe aqui mencionar, se adivinha o drama da insegurança no crescimento da criança, quando ao longo dos quatro anos de escolaridade, a âncora desse amor e respeito anda à deriva nas águas da constante mudança de professora.
Contextualizemos no âmbito deste complexo processo a existência de exames no 4.º ano, ou, se preferirmos, a forma como contribuem para edificar a complexidade do bem-estar da criança, nos moldes em que foram lançados neste ano de 2013.
Num ambiente educativo imbuído de confiança, as crianças são informadas pelo seu professor sobre o desenrolar do processo e o diálogo acontece. Relatemos excertos a partir do exemplo vivido numa escola do 1.º ciclo:
“– Terão de fazer um exame a Matemática e outro a Língua Portuguesa …
– Assim como as provas que fazemos com a professora?
– Mais ou menos, é que não sou eu que vos faço a prova…
– Mas a professora é que sabe fazer as nossas provas! Foi a professora que nos ensinou… Não sabe fazer esta?
– Desta vez não posso ser eu, na verdade não sabemos quem a faz.
– Mas nós não conhecemos essa professora e ela também não nos conhece…
– Pois é, mas vocês vão imaginar que ela vos conhece e assim é mais fácil. Lembrem-se que eu sei que vocês aprenderam e que são capazes.
– É a professora que depois vai ver se fizemos bem, não é?
– Também não sabemos quem vai ver o que fizeram.
– Ah, assim fico com medo! A minha letra não é muito bonita… só a professora sabe lê-la bem…
– Não vale a pena terem medo, eu estarei a pensar em vocês para vos dar força! Ainda há mais um pormenor: teremos que ir a outra escola fazer a prova e…
– Porquê? A nossa sala é esta, temos mesas e cadeiras… Nós sentimo-nos bem é na nossa escola.
– Eu sei, mas são ordens do ministério.
– Ah! E como é que vamos? É muito longe? A professora vai connosco? Eu sozinho não sei ir…
– Claro que vou com vocês. Só não posso estar na sala quando estiverem a fazer a prova… mas fico à vossa espera lá fora.
– Ficamos sozinhos numa sala qualquer? Sem a professora? Eu não vou!
– Claro que vais, vão todos. Haverá outras professoras que ficam com vocês…
– Boazinhas como a professora? E se são más ou não gostam de nós?
– Não se preocupem, não podem é perguntar nada, entram e sentam-se direitinhos até ao fim da prova…
– E se tivermos vontade de fazer xixi, não podemos?
– Não, não podem sair nem para ir à casa de banho, nem para beber água. Só podem levar as vossas coisas num saquinho de plástico transparente, caneta, lápis…
– Num saco transparente. Porquê?
– Para que se veja bem que só levam o que devem levar.
– Ah, eles desconfiam de nós…
– São regras… e mais uma coisa antes de entrarem têm que pôr o vosso nome num papel…
– No papel da prova?
– Não, isso é lá dentro. Cá fora é um papel onde diz que não levam um telemóvel no bolso. Chama-se assinar um termo de responsabilidade.
– Um termo de… responsabilidade?! O que é isso?
– É para as professoras que vos recebem terem a certeza que não levam telemóvel.
– Mas nós não íamos levar telemóvel se a professora nos disser… Porque não nos perguntam?
– Pois, mas não chega. Têm que assinar o tal papel, para que seja mesmo verdade. Quando se assina um termo de responsabilidade e depois se mente as pessoas sofrem uma espécie de castigo. Neste caso a prova seria anulada.
– É como uma promessa a que se não deve faltar, não é? Mas quando prometemos está prometido, não é preciso assinar nada! As pessoas não mentem quando assinam um… papel?
– Quem me dera que não fosse nada assim… para que servirá fazermos este exame?”
No preciso momento em que a criança está a viver a crise de crescimento dos seus nove anos, que sentido adquire toda esta panóplia de procedimentos no seu sentir, no seu pensar, no seu bem-estar, independentemente de servir supostos conceitos de rigor ditados por um qualquer ministério?
Transmite-lhe, sem sombra de dúvida, que a pessoa de referência com quem construíram a confiança em si próprios e nos outros não é totalmente confiável na capacidade de se responsabilizar por tudo o que fizeram juntos.
Transmite-lhe, sem sombra de dúvida, que quem não a conhece e portanto não a estima é que tem poder para decidir sobre ela.
Transmite-lhe, sem sombra de dúvida, que não basta agir respeitando o que nos pedem, é preciso apresentar provas em invólucros transparentes para que os olhos, mais do que o coração possam julgá-la.
Transmite-lhe, sem sombra de dúvida, que existem procedimentos estranhos e ainda incompreensíveis à sua vida que substituem a pergunta que se lhe faz, olhos nos olhos, na resposta à qual está contida a coragem de dizer a verdade.
Transmite-lhe enfim e sem sombra de dúvida que, como nada disto tem sentido no contexto do caminho que cada criança conseguiu fazer, deve ter outra finalidade alheia ao bem-estar do seu crescer. Mas isto ela só compreenderá mais tarde: usa-se a criança para servir metas que controlem os professores e construam uma exterioridade fictícia de rigores absurdos e balofos para serem aplicados a crianças que apenas despertaram para a vidinha dos homens.
Por tudo isto e muito mais que não cabe aqui mencionar, falar de procedimentos de exames não é um assunto político, é um assunto ético e moral no seio de uma cultura cujos procedimentos prognosticam com evidência a doença e a decadência que a corrói.
A escolha é simples e faz-se na consciência de cada um: ou se permite que a doença alastre na direção do futuro através de cada criança e se promove definitivamente a decadência da própria Infância, ou se olha de novo com amor e respeito aquilo que o crescimento do ser humano nos exige através de cada criança.
“A criança é o pai da humanidade”, disse-nos Wordsworth, na esperança de que soubéssemos salvaguardar a grandiosidade humana que na criança brilha ainda quase incólume. Cabe-nos a todos nós – pais, educadores, professores, pediatras… – fazê-lo, em vez de o delegar num qualquer Ministério da Educação que, de educação, pouco sabe.
Por: LEONOR ARROIO MALIK
A autora é pedagoga, doutorada em Ciências da Educação e escreve segundo o Acordo Ortográfico.
In: Público
Como me revi nestas palavras, como mãe e professora. Os meus alunos são de 6ºano e sentiram isso! E perante os resultados, alguns choraram. Parece que o nosso trabalho de 2 anos, não se espelha ali!
ResponderEliminarDaqui a 2 anos, é a minha pequenina que faz exame...Deus permita que não sinta esse sabor amargo.