É tempo de lutar contra o que nos diminui como humanos; é tempo de lutar pelos Direitos que nos engrandecem. Parafraseando A Marselhesa: “Aux Droits citoyens!”.
Nós europeus temos sido sistematicamente convidados e instigados a olhar para fora da Europa com olhares diferentes dos habituais. Muitos séculos se passaram em que a Europa olhou para o resto do mundo a partir de cima, com “supervisão” e com superioridade. Olhamos, no passado os outros povos como não civilizados, incultos e, sobretudo, como manipuláveis para nos darem ou venderem barato aquilo que precisávamos. Olhando para este cenário sem cosméticas – isto é, arrumando de vez a retórica do “esforço civilizacional”, do encontro de culturas, da ajuda desinteressada e da promoção do desenvolvimento – verificamos que a Europa na grande maioria dos casos se serviu mais do mundo e lhe impôs o seu poder e a sua cultura do que o contrário. Se dúvidas houver sobre este assunto basta consultar, por exemplo, as raízes históricas do conflito da Síria e perceber quanto os interesses europeus contribuíram para armar uma situação explosiva e aparentemente irresolúvel.
A Europa constitui-se assim como parte importante e responsável em conflitos onde povos antes subjugados se revoltam e se organizam para originar sofrimento: historicamente – repito historicamente – a Europa não é alheia às decisões que conduziram a grande parte dos conflitos regionais que se desenrolam na atualidade. Mas, ao mesmo tempo que é preciso conhecer, aceitar e lidar com estas responsabilidades, é importante também reconhecer como floresceu na Europa uma ética nunca antes vista na história da Humanidade sobre a dignidade humana. Podemos dizer – e certamente com razão – que esta ética foi criada de forma limitada: quando a Europa falava de “Homem” queria efetivamente dizer “Homem Europeu”. Mas o certo é que mesmo com um carater mais restrito, a Europa teve um papel decisivo para entender a dignidade humana tal como hoje a consideramos.
É necessário lembrar um período fertilíssimo do triunfo desta ética humana que se verificou em 12 anos no final do século XVIII. Neste período são proclamados quatro documentos fundamentais. Em 1776 a Declaração de Independência dos Estados Unidos da América em que se consigna o “direito à vida, à liberdade e à busca da felicidade”. Como é sobejamente conhecido esta declaração apesar de ter sido proclamada nos Estados Unidos é de inspiração dos iluministas franceses. Mas há mais: em 1787 no preâmbulo da Constituição dos Estados Unidos definem-se os direitos básicos dos cidadãos. Dois anos mais tarde, em 1789 a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão em França, estabelece a seminal trilogia que guiaria a Revolução Francesa: Igualdade, Fraternidade e Liberdade. Finalmente em1791 a Lei dos Direitos dos Estados Unidos limita formalmente os direitos do Estado e assume a proteção dos direitos dos cidadãos. Muito se tem discutido sobre as razões do aparecimento tão concentrado e veemente destas declarações. Certamente as classes sociais que tinham ascendido ao poder necessitam de criar uma ética nova que não fosse coincidente ou mesmo inspirada nas éticas das classes que tinham sido derrotadas nomeadamente o Clero. Os direitos do Homem e do Cidadão surgem assim como uma dignificação da pessoa enquanto existência laica e não enquanto criação divina.
Estes documentos são certamente a base conceptual e ética que conduziram, mais de 150 anos mais tarde, à proclamação da Declaração Universal dos Direitos do Homem feita a 10 de Dezembro de 1948 (prestes, portanto, a completar 67 anos).
Os acontecimentos de 13 de Novembro deste ano de 2015 em Paris não podem deixar de nos interrogar sobre este percurso de mais de 200 anos dos Direitos Humanos. Como primeira reflexão não é indiferente nem certamente por acaso que estes acontecimentos se desenrolem em Paris. Muito recentemente assistimos ao assassinato de jornalistas do Charlie Hebdo e agora somos confrontados com os atentados de 13 de Novembro. Não é Paris por acaso. Paris tem, historicamente, um protagonismo na afirmação de Direitos Humanos que são para os jihadistas o alvo principal a abater. Os Direitos Humanos são o grande inimigo destes grupos. Antes de mais porque são laicos, depois porque proclamam que “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Dotados de razão e de consciência devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade” (art.º 1 da DUDH). Na verdade nada mais incompreensível para os radicais religiosos para quem a liberdade é uma ilusão e uma armadilha ocidental e a fraternidade um valor secundário quando comparado com a vingança.
Estes atentados em Paris e o clima de medo que pretendem instalar em toda a Europa são mais um teste de resistência aos Direitos Humanos. E certamente nos vão mostrar as suas forças e as suas fraquezas. Vemos até ao presente que os Direitos Humanos são muito vulneráveis: estas ameaças estão em vias de reduzir a nossa liberdade, a nossa possibilidade de circulação, a hipertrofia do controle e da securitização do Estado. Não é ficção pensar que nos podem levar a curto prazo a restrições na liberdade de expressão e outras que lhe estão associadas. Estes atentados mostram as fragilidades dos Direitos Humanos face aos seus inimigos. Mas esperamos também que realcem a vitalidade dos Direitos Humanos, que mostrem que podemos e devemos continuar a lutar por uma sociedade de liberdade, mais igualitária e mais fraterna. A Europa cometeu muitas injustiças com outros povos do mundo mas a verdade é que teve o tempo, a lucidez e a humildade para reconhecer os seus erros e para fundar uma nova ética de relacionamento. Diríamos aos europeus e aos não europeus: Não é tempo de conduzir o automóvel a olhar para o retrovisor. É tempo de lutar contra o que nos diminui como humanos; é tempo de lutar pelos Direitos que nos engrandecem. Parafraseando A Marselhesa: “Aux Droits citoyens!”.
Por: David Rodrigues
Professor Universitário, Conselheiro Nacional de Educação
In: Público