Entramos na era “pós-Crato”. O ministro responsável pelas opções educacionais nos últimos quatro anos foi substituído e tomou já posse a nova ministra da Educação ainda que não saibamos, dada a complexa conjuntura política que vivemos, porquanto tempo exercerá ela o cargo.
Estas mudanças são sempre portadoras de uma expectativa esperançosa. A actual ministra (ou quem lhe vier a suceder) que educação encontrará e qual será o alcance da sua intervenção? Num país como o nosso, integrado num espaço geoeconómico com fortes linhas de organização e de harmonização entre os membros da comunidade a que pertencemos, é impensável que qualquer novo responsável prometa (e sobretudo possa cumprir) mudanças coperniquianas no sistema de ensino. Quando se analisam longitudinalmente as políticas educativas seguidas nos últimos anos encontramos mais frequentemente continuidades e alternâncias do que rupturas e revoluções. A verdade é que o sistema educativo está de tal forma embutido na vida da sociedade que qualquer mudança mais radical pode entrar em ruptura com a organização da vida e com os valores das famílias e das comunidades. Lembro-me quando trabalhei em projectos europeus na Rússia como qualquer proposta de mudança da escola colidia com a organização de vida das famílias e, logo, tornava estas mudanças irrealizáveis.
A consciência do alcance limitado das mudanças não pode, no entanto, desmerecer a determinação em as realizar. Precisamos de mudanças de política na Educação para que a nossa escola não fique (ainda mais) desfasada das motivações e das necessidades dos alunos. Penso que um ministério pós-Crato terá de encarar três grandes urgências:
1. Precisamos de modificações profundas no currículo. Entendemos aqui currículo de forma restrita, isto é, como o conjunto de conteúdos que se considera essencial que o aluno deva aprender. A modificação do currículo é imperiosa por vários motivos. Antes de mais porque assistimos recentemente a um (ainda maior) estreitamento das aprendizagens. A hipertrofia do Português e da Matemática ocupou o espaço que devia ser de outras aprendizagens e experiências. Falta tempo para explorar a criatividade do aluno, falta tempo para ele conhecer e participar em aprendizagens ligadas ao seu ambiente, falta tempo para ele se comprometer em projectos que tenha motivação de desenvolver. Por outro lado, é necessário um olhar sobre a extensão e complexidade crescente dos currículos. Várias associações profissionais de professores têm apontado a crescente complexidade e extensão dos currículos e há mesmo professores que que consideram que não é possível (mesmo a ritmo de “mata-cavalos”) “dar” todo o programa. E quando se consegue terminar esta corrida ansiosa para “dar” o programa, resta-nos olhar para trás e ver quantos alunos foram vítimas desta corrida desenfreada e tendo descolado não sabemos como os reagrupar. Precisamos ainda de enriquecer o currículo incentivando na escola o desenvolvimento de uma vida cultural em que os alunos tenham acesso aos bens culturais para com eles criarem laços e possibilidades de fruição.
2. Precisamos também de uma intervenção nas escolas. Quem conhece as escolas mais de perto sabe quanto desânimo e cansaço precoce lá se vive. A maneira mais simples de encontrar as causas deste ambiente é culpar os professores. A maneira mais complexa e eficaz é tentar compreendê-los. Compreender significa segundo o provérbio americano “andar nos seus sapatos”. E agora que tanta gente quer dizer aos professores o que devem ensinar, como se devem comportar, que estratégias devem usar, continua a existir muito desconhecimento sobre a pressão, a exigência e o cansaço que provém de estar sozinho dezenas de horas semanais com grupos vibrantes de crianças e jovens. Qual é a resposta que se deu a este acréscimo de exigência sobre os professores? A resposta foi muito mais burocracia para resolver, mais reuniões inúteis, menor participação nas decisões e vida colectiva da escola. A resposta foi, enfim, mais trabalho burocrático e menos oportunidades de uma profissão apoiada, criativa e bem-sucedida.
3. Há ainda um terceiro aspecto que convém recordar a urgência. Precisamos de reforçar a presença da sociedade na escola e da escola na sociedade. Quer isto dizer que, para começar, os pais devem reforçar os seus elos com a escola. Por vezes se fala, e justificadamente, no conservadorismo e radicalismo dos pais face a projectos inovadores que a escola quer desenvolver. Só há uma maneira de atalhar este problema: criar espaços atractivos de diálogo, de troca de planos e acções que permitam um melhor conhecimento mútuo. Muitos pais são conservadores porque nunca conheceram outra escola que não fosse a sua e, por isso pensam que o “antigamente é que era bom”. Trata-se de mobilizar os pais para criar uma escola que seja factor de desenvolvimento do aluno, da família e da comunidade. É ainda importante reforçar a presença da escola na comunidade. Sabemos o quão “romântica” pode parecer esta ideia. Por vezes imaginamos que as comunidades à volta das escolas são receptivas, presentes e dinâmicas e encontramos, pelo contrário, comunidades indiferentes, ausentes e pouco dinâmicas. Assim mesmo, é importante que a escola faça o máximo que puder para não ser um depósito, um gueto na comunidade.
Ernest Hemingway escreveu que “agora é o tempo de usar o que se tem e não de procurar o que nos falta”. Talvez este seja um bom tema para o novo responsável do Ministério da Educação: contar com o que tem. E tem certamente possibilidades de reformar o currículo, de revitalizar a vida nas escolas e de criar condições e incentivos para que a escola se possa embutir nas comunidades onde está.
Os tempos de mudança ressuscitam sempre a esperança que julgávamos adormecida e mesmo inviável. É esta certamente a maior missão de quem encabeçar as políticas educativas nos próximos anos: acordar a esperança que, apesar de ter passado uma má noite, olha expectante o nascer do sol.
Por: David Rodrigues
Presidente da Pró – Inclusão / Associação Nacional de Docentes de Educação Especial. Conselheiro Nacional de Educação.
In: Público
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