No movimento escola moderna não há manuais, os alunos podem ser professores e os professores é que têm TPC. E os pais que fiquem tranquilos: as metas definidas pelo ministério são sempre cumpridas
Quase ninguém esquece o primeiro dia de aulas da primária: acordar cedo e ser deixado numa sala com um adulto que não conhecemos e uma data de miúdos no mesmo comprimento de onda - sonolentos, tímidos e a desejar que o dia passe depressa. Para muitos, a sensação estende-se para lá do primeiro dia e pô-los a gostar de ir à escola é um bico-de-obra tão grande como conseguir ensinar a mesma coisa a mais de 20 crianças ao mesmo tempo - preocupação recorrente entre pais e professores, que esteve na base do movimento escola moderna (MEM), nascido nos anos 20 em França e que chegou a Portugal na década de 60.
A base de um movimento ainda pouco conhecido em Portugal é integrar os alunos numa comunidade em que cada um aprende ao seu ritmo. Em vez de carregarem mochilas com manuais todos os dias ou de passarem o ano virados para o quadro a ouvir o professor dar matéria, são os alunos que criam os seus dicionários e livros, a partir de textos seus, e passam os quatro anos do ensino básico a "aprender a aprender" (e, arrisca a jornalista pela experiência pessoal, também a aprender a brincar. Os pais que não se assustem: a palavra "brincar" não é usada de ânimo leve.) "Uma das ideias do movimento é que os materiais da vida corrente podem todos ser ferramentas de trabalho na sala de aula", explica ao i Maria de Jesus do Ó, 63 anos. "A ideia de montar uma loja e de usar uma balança surgiu-me porque tinha de ensinar o dinheiro, mas fazer só contas não tem piada. Com a idade deles, era mais interessante um fazer de lojista, outro de cliente, interiorizando as coisas enquanto mexiam nos materiais."
Maria de Jesus, agora reformada, deu aulas durante 27 anos, nem sempre neste modelo. "Comecei a dar aulas antes do 25 de Abril, em que era ensinar a ler, a escrever e a contar, mais nada. Anos mais tarde, ainda antes do fim do antigo regime, a escolaridade passou a ser obrigatória e apareceram-nos nas turmas alunos com dificuldades. Aí percebi que não dava conta de tudo com o modelo tradicional."
Estava aberta a porta ao movimento, que lhe chegaria em 1977 pelo delegado de saúde de Sintra, "que percebeu que em Queluz estávamos a ter muitos miúdos com dificuldades" e que levou os professores a acções de formação em A-da-Beja. "Quando começamos a verificar o sistema de trabalho vemos que é muito interessante, mas também muito difícil de aplicar."
Difícil é dizer pouco. Os professores que, na sala de aula, preferem a democracia por oposição à ditadura acabam por levar mais trabalhos de casa que os alunos (que raramente têm os famigerados TPC). "É um processo muito trabalhoso e eu acho que os professores não lhe pegam por isso, e não porque não achem piada", diz a professora. Uma semana na vida de um destes professores pode parecer um pesadelo para outros que baseia as aulas em sermões aos miúdos e testes padrão para todos. Com o MEM, até a palavra do senhor (professor, leia-se) é questionada. "É aquela ideia de que o professor não sabe tudo e de que o aluno aprende fazendo. Não é por eu dizer que isto não se faz ou que isto se faz assim que eles aprendem. É preciso aprender fazendo e fazer puxando pela cabeça."
Se um aluno pergunta o que é alguma coisa ou como se faz, os professores mandam pesquisar. "Usamos os métodos das várias ciências. Como é que um historiador trabalha? Faz pesquisas, entrevista fontes... Os meninos podem fazer isso. Nas Ciências, é pela experimentação e pela observação. Então tentamos que os alunos façam esse tipo de trabalho", explica Inácia Santana.
da anarquia à Democracia Inácia, de 54 anos, dá aulas há 33, desde sempre neste modelo. Em vésperas de regresso às aulas, recebe o i na sua sala, na Escola Frei Luís de Sousa (Lisboa). "Saí da escola de formação inicial a rejeitar o método tradicional. Sentia que a escola era uma coisa morta, sem vida. Senti que ou estava na escola de outra forma ou não conseguiria ser professora. Foi quando conheci o movimento e fiquei deslumbrada", conta.
"Nós estamos habituados ao modo de organização simultâneo, que vem do século xvi, xvii, que predomina ainda hoje. Parte da concepção de que os alunos aprendem colados à palavra do professor: o professor diz, logo os meninos aprendem. Mas todos sabemos que não é verdade, em nenhuma conferência eu consigo apreender tudo o que o conferencista diz e toda a gente sabe que hoje há muita diversidade nas salas de aula." Este ano a professora terá um quarto ano, em que os alunos já sabem como tudo funciona. "Cada um tem um plano individual de trabalho, em que cria as suas metas. E isso dá-lhes muita autonomia. Todos se avaliam e avaliam o sistema. E às sextas temos o Conselho de Turma, para discutir o que se fez, o que não se fez, como correu a semana, o que faremos na semana seguinte e até discutimos problemas do recreio."
Um dia Inácia chamou um aluno de outra turma para um conselho, porque um dos seus alunos acusava-o de lhe ter batido. O rapaz acabaria por procurar um pretexto para ir todas as sextas à sala. "Há um dia que me diz que não ia estar na escola nessa sexta, que queria avisar-me de que não podia ir ao conselho. Mas acabou por aparecer. Acho que já só fazia disparates para poder ir ao nosso conselho (risos)."
O mesmo acontecia com Maria de Jesus: tinha fama de "professora má", por causa do "vozeirão", mas, "quando outra professora faltava e recebia miúdos dessas turmas, alguns diziam que queriam ir para a minha sala para sempre".
O movimento, que nasceu na década de 20 pelo pedagogo francês Célestin Freinet - cognominado "anarquista" por recusar o modelo instituído de ensino - é hoje o favorito de inúmeros professores na calha, que na faculdade se rendem ao conceito de ensinar mais do que a ler, escrever e contar. "Os miúdos habituam-se a falar, a criticar, a ser criticados, a falar entre eles. No fundo é uma escola de vida. Falam à vontade com o professor, à vontade entre eles, ajudam--se, têm tarefas e responsabilidades e têm de dar contas de tudo", explica.
O modelo, contudo, não está livre de problemas, ainda que "os obstáculos sejam mais entre pares", adianta. "Os colegas não se sentem bem quando temos um esquema diferente, há muita resistência." A isto juntam-se as dúvidas dos pais. "Temos de lhes transmitir a ideia de que sabemos o que fazemos, de que somos profissionais. Eu costumo dizer aos pais: se vou ao médico, tenho de confiar nele; se não confiar, é melhor mudar de médico. É o mesmo com os professores", explica Inácia.
A Finlândia, que há vários anos lidera o ranking mundial de melhores escolas, está mais familiarizada com o modelo. Mas em Portugal este continua a ser o "ensino alternativo", desconhecido da maioria. "Às vezes há a ideia de que os professores neste modelo ficam à mercê dos alunos e é o contrário: tem de se ter as antenas bem no ar para perceber onde cada um está e como está a evoluir", diz Inácia. Quem conhece bem o modelo não tem dúvidas de que é completo e democrático - ou não tivesse sido distinguido, nos 30 anos do 25 de Abril, como Membro-Honorário da Ordem de Instrução Pública.
E se dúvidas persistem ouçam-se ex-alunos do modelo - que hoje, com outra maturidade, admitem que foram privilegiados. É o caso de Marta Azenha, designer de moda de 24 anos, que não vai querer os filhos noutro sistema. "Aprendemos as coisas de forma orgânica, é uma evolução que faz sentido, porque nos prepara para o raciocínio do dia-a-dia mais do que só para saber as coisas", explica ao i. O que as amigas mais estranhavam era ela não ter trabalhos de casa. "Não sentia falta, mas sabia que os outros meninos tinham uma certa inveja." Sofia Fischer, colega de Marta e hoje designer de comunicação, acrescenta: "Lembro-me de até as professoras do ATL acharem estranho não termos TPC. Enquanto os outros trabalhavam nós brincávamos." É que as brincadeiras também ajudam a crescer. E a brincar a brincar, o sonho anarquista entrou nas salas de aula e hoje é pura democracia por (e para) miúdos. Como diz Maria de Jesus, "O mais difícil é perder a aversão ao que é diferente. Depois tudo é mais fácil".
O MEM é aplicado tanto em escolas privadas como públicas. Para mais informações, contacte a sede por telefone ou vá directamente a www.movimentoescolamoderna.pt.
In: I online
Olá, olá !
ResponderEliminarEu de educação não percebo grande coisa, mas vejo os resultados. O JP usa-o desde bebé e ainda hoje...calhou sempre . Primeiro o colégio inteiro, depois uma educadora do ensino público e agora será a primária.
Eu vejo motivação e gosto por trabalhar. ENORMES.
Tenho muita convicção que deve-se a este método. Posso estar enganada, mas tenho essa intuição.
Obrigado por este artigo. Beijinho