Inês:
Naquele dia especial, Inês foi convidada por Adelaide para irem à cidade. Adelaide já tinha aprendido a escrever o seu nome nas aulas e ia alterar o bilhete de identidade, que passaria a exibir a sua assinatura. Havia que festejar este acontecimento, antes de dar início à luta por um novo objetivo: aprender a ler e a escrever tudo. Na Conservatória do Registo Civil, Inês presenciou a alegria e a emoção de Adelaide e sentiu-se feliz e realizada.
Américo:
No autocarro, a jovem olhava insistentemente para Américo, que acabou por cumprimentar, explicando-lhe ter sido sua aluna vários anos antes. A cara, já diferente, não despertava memórias; o nome, Anabela, também não; Américo começava a sentir-se embaraçado. Anabela começou então a falar da turma, das atividades e projetos desenvolvidos, de histórias ocorridas com ela própria. A memória de Américo disparou. Continuando, ela perguntou:
"Lembra-se, professor, de quando houve o acidente na fábrica ao pé da escola? O incêndio, o medo de uma explosão, a evacuação apressada, os alunos assustados a chorar? Lembra-se de como nos fez sentir que tudo aquilo era um exagero, contando que o seu filho estava numa casa perto da fábrica e se o perigo fosse assim tão grande já teria ido buscá-lo em vez de estar a cuidar de nós?"
Américo surpreendeu-se. Como é que aquela jovem, já adulta, acreditava ainda naquela história que, com tanto custo (a preocupação com o filho, realmente numa casa perto da fábrica, era grande), tinha contado para acalmar os alunos e garantir que todos tinham familiares com quem ir ter após a evacuação? Sorrindo, comentou com Anabela: "Continuou a acreditar nessa história até aos dias de hoje? Afinal até sou bom ator!". Sentiu-se realizado. O seu esforço nesse dia tinha sido bem sucedido e, pelos vistos, tinha sido marcante para as crianças.
Dora:
No quiosque, Dora foi atendida por um funcionário sorridente, com um amável: "O que deseja, professora?". A cara deixava adivinhar traços de um aluno que há vários anos não via e foi a conversa que se seguiu que lhe recordou Artur, o jovem rebelde, que gostava de dar uns "tiros" às aulas, revoltado, com comportamentos nem sempre muito adequados. As suas patifarias, os atendimentos à sua mãe, as conversas com o aluno, os contratos de comportamento que com ele tinha feito, tudo foi surgindo em catadupa. A verdade é que esse ano letivo chegou ao fim com a passagem de Artur para o ensino secundário.
Dessa revolta, não havia quaisquer traços no rosto bonito. Havia agora um jovem sensato e determinado, que repartia os seus dias entre o trabalho na loja e as aulas da universidade, custeadas por si. Dora sentiu-se feliz e orgulhosa. Tinha valido a pena apertar com ele naquele ano.
Dir-me-ão que este artigo é um pouco (ou muito) "piegas". Talvez o seja. Com ele, no entanto, pretendo mostrar uma faceta do ofício de professor: o relacionamento interpessoal, a preocupação com a formação global do aluno como um ser íntegro e feliz e uma vida feita de histórias significativas, umas vezes muito difíceis, outras vezes muito felizes. De todas as histórias sobressai um elemento comum: o afeto e a empatia como ingredientes fundamentais para o desenvolvimento de uma relação pedagógica saudável e de motivação para a aprendizagem por parte dos alunos. E se estas histórias e estes alunos ficaram na memória dos professores, provavelmente muitos professores ficam também na memória dos seus alunos e continuam a ser, para eles, referências positivas ao longo da vida.
In: Educare
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