Um tema tradicional das discussões em Ciências da Educação é até onde pode ir a autonomia da escola face à sociedade. As posições organizam-se à volta de dois polos: aqueles que defendem que a escola é um sistema que tem os seus valores próprios e pode, por isso, viver praticamente autónoma dos valores sociais vigentes e aqueles que afirmam a vinculação inexorável e inevitável da escola aos valores sociais.
Neste caso, parece-me que uma posição intermédia poderia ser mais útil: o pensar que a escola tem uma “autonomia relativa” (um termo cunhado por Poulantzas), isto é que sendo profundamente influenciada pelos valores da sociedade em que existe, pode assumir valores e práticas que não são completamente coincidentes.
Vem esta introdução a propósito da influência do Mercado (uma ideologia dominante nas nossas sociedades atuais) sobre a Educação.
Recentemente durante o Congresso do CDS/PP, a JC apresentou uma proposta em que se defendia “redução da escolaridade obrigatória, regressando à formulação anterior (9.º ano) bem como a “liberdade de aprender” como um "direito fundamental de cada pessoa”. Passando por cima da deturpação grosseira do direito da liberdade de aprender (que na verdade é o direito de Não aprender…), esta proposta almejaria a instauração de uma espécie de mercado em que o direito à escolaridade plena dependeria da “liberdade” do aluno, isto é a troca de algo que lhe é inerente, uma “condição”, para passar a ser fruto de uma “situação”.
Comentaria três aspetos sobre esta proposta:
1. Invocar a liberdade e a responsabilidade para justificar a escolha entre uma escolaridade obrigatória completa ou incompleta, é um ardiloso disfarce para a acentuação da desigualdade. Sabemos hoje e muito bem, que menos habilitações significam a espectativa de menos e pior trabalho; sabemos também que é demagógico chamar “liberdade” e “responsabilidade” a situações sociais que, efetivamente são meras manifestações de desigualdade e de falta de equidade nas condições de acesso e sucesso educativo.
2. Quem defende que a duração da escolaridade é exagerada, não entendeu ainda de que a escola hoje tem funções muito diferentes das que tinha há algumas dezenas de anos atrás. Hoje a escola tem que preparar alunos para uma sociedade extraordinariamente mais complexa e que implica níveis de participação incomensuravelmente mais exigentes do que antes. Hoje, a escola tem de assumir um leque muito mais alargado de funções do que antes e é muito claro que a escola não trata só de “instrução” mas sim de “educação”. Hoje, não se trata de “fazer todos doutores” (como soa velha esta afirmação…) mas de proporcionar a cada um percursos escolares que lhes permitam uma atividade, uma participação e uma vida sustentada nas sociedades em que vivem.
3. Quem prosseguiria e quem seria barrado neste caminho para a escolarização? Quem seriam os alunos que ficavam no 9.º ano e os que continuavam a estudar? Imagino que isso seria aferido pelo aproveitamento dos alunos. (Na melhor das hipóteses, é claro!). É a lei do mais forte em termos escolares. À primeira vista nem parece muito mal… Mas… Sabemos que o aproveitamento (e mesmo o comportamento) dos alunos se encontra muito dependente do meio sociocultural em que vivem. Este meio sociocultural está ligado inexoravelmente ao meio económico. Enquanto não for possível desfazer esta ligação, a seleção é uma competição viciada: é uma corrida entre atletas de alta competição e atletas com reumatismo... O resultado no final da corrida é aquele que seria elementar prever antes de a corrida começar. O que sabemos é que a escola é, ela sim, um importante fator que permite – apesar de tudo – atenuar as diferenças sociais, por isso, quem mais usufrui desta escolarização são os alunos com mais carências, isto é aqueles a quem seria barrada a continuação dos estudos.
Todas as crianças e jovens precisam da escola. Para todos é imprescindível. Não podemos portanto impedir que nenhum deles fique precocemente amputado desta possibilidade de mobilidade social. E até é irónico que se procure impedir os alunos que mais precisam da escola, aqueles para quem a escola é realmente essencial pelas injustiças sociais que os privaram do desenvolvimento do seu potencial, que sejam estes os alvos de políticas económicas que vêm o mercado, o perverso mercado, como critério de aferição de qualidade e de justiça.
Sei que vivemos tempos difíceis mas continua a ser o tempo em que a Educação tem de desenvolver a sua “autonomia relativa” face a uma sociedade rendida ao mercado. Rendida mesmo.
Por: David Rodrigues
Professor universitário, presidente da Pró-Inclusão – Associação Nacional de Docentes de Educação Especial
In: Público
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