Guimarães tem projecto pioneiro para levar ensino artístico às escolas do primeiro ciclo através das AEC. No ano de lançamento há mais de 1600 crianças envolvidas.
“Leão”. “Felicidade”. “Malabarismo”. Cada criança escolhe uma palavra que resuma o universo dos palhaços. Algumas repetem-se, mas há quase tantas quantos os 19 alunos desta turma. Pouco depois, em grupos de três ou quatro, fazem pequenas dramatizações a partir do mesmo mote. Veremos leões a precisar de domador, andares desengonçados. Muitas caretas. A professora é uma mulher feliz: “Sinto neles uma grande alegria por estarem a fazer isto. É como se visse as emoções a saltar”.
Ana Sofia Freitas dá aulas de expressões artísticas a estes alunos da EB1 do Alto da Bandeira, em Guimarães, desde o início do ano lectivo. Tem outras quatro turmas nas Actividades de Enriquecimento Curricular (AEC) do 1.º ciclo, fruto de um projecto pioneiro da autarquia que está a levar o ensino artístico às escolas. Depois de ter sido Capital da Cultura, em 2012, e tendo em conta a diversidade e qualidade dos equipamentos culturais de a cidade dispõe, havia a “responsabilidade de levar a cultura aos alunos”, defende a vereadora da Educação, Adelina Paula Pinto. Por estarem na responsabilidade directa do município, as AEC foram a “forma mais ágil” de o fazer.
O projecto chama-se Mais Dois e centra-se no teatro e na dança. Apesar de já ter havido outras iniciativas de ensino artístico em escolas públicas nacionais, esta é a primeira vez em que a iniciativa é feita tendo por base as AEC. A proposta é transformar estas actividades “em algo mais interessante do que aquilo que elas têm sido”, diz a vereadora da Educação. O objectivo do programa é duplo. Por um lado, “construir uma sensibilidade para as artes, a partir da escola” e, por outro, “construir melhores condições de aprendizagem, a partir do desenvolvimento do próprio aluno”, explica Elisabete Paiva, directora do serviço educativo da cooperativa municipal A Oficina — a mesma estrutura que gere Centro Cultural Vila Flor e o Centro de Internacional de Artes José de Guimarães —, que é parceira desta iniciativa. “Não vamos formar artistas”, avisa. Nem as artes serão mero instrumento para melhorar os resultados escolares dos alunos.
Este é o “ano zero” do Mais Dois, assumindo um carácter de projecto-piloto que deve servir de base para um modelo de trabalho a quatro anos — e que será avaliado por uma equipa de investigadores da Universidade do Minho. Todavia, mesmo em momento de lançamento, este ano há já mais de 1600 estudantes envolvidos, o que representa cerca de um terço da população do 1.º ciclo no concelho de Guimarães, em sete dos 14 agrupamentos de escolas do concelho.
Além das aulas, o programa inclui também duas actividades ao longo do ano lectivo que implicam o contacto directo dos alunos com artistas: uma saída para assistir a um espectáculo em auditório e o acolhimento de um projecto portátil — uma peça itinerante, um contador de histórias, uma oficina ou uma leitura encenada.
Ana Sofia Freitas é um dos 19 professores seleccionados pela autarquia para darem aulas no âmbito do Mais Dois. Nas últimas semanas estiveram em formação com artistas como os encenadores e coreógrafos Leonor Barata e Vítor Hugo Pontes e participar em oficinas de voz, movimento e ter contacto com a história da dramaturgia. Além dos docentes contratados para as AEC, também os professores-titulares de cada uma das 81 turmas foi convidado para a formação. Quase todos responderam à chamada. Enchem a sala de reuniões da Plataforma das Artes e da Criatividade, para ouvir responsáveis de outros projectos de ensino artístico que foram acontecendo nos últimos anos em escolas nacionais.
A formação é também uma oportunidade para estimular o contacto entre os professores das turmas do 1.º ciclo e os das AEC. O Mais Dois está a tentar facilitar esta relação, permitindo o cruzamento de matérias e de abordagens metodológicas. “Nem sempre temos muito tempo para o fazer”, confessa Sónia Faria, professora titular da turma da EB1 Alto da Bandeira. “Mas com esforço e boa vontade, acabamos por conseguir coordenar algumas coisas”.
A professora titular da turma de Ana Sofia começa a perceber as primeiras consequências positivas. Os alunos mais reservados estão a ficar desinibidos. E as suas aulas rendem depois das actividades com a professora do Mais Dois: “Este jogo do faz de conta que eles fazem aqui transforma-lhes a energia em calma e estão prontos para trabalhar”.
No início da sessão, a professora das AEC convida os alunos a tirarem os sapatos, para se sentirem mais confortáveis. As crianças aproveitam o pouco atrito provocado pelas meias para deslizarem no chão da sala polivalente. É um lugar amplo, junto do refeitório da escola, onde as crianças têm espaço à sua vontade. Mas nem sempre está disponível. Nos dias de chuva, o espaço é ocupado pelas aulas de Educação Física, que ficam sem hipóteses de usar o recreio da escola. Os alunos do projecto Mais Dois têm, por isso, que permanecer dentro da sua sala de aula e o trabalho da professora fica condicionado.
“É uma escola antiga, com chão em soalho. Se o ponho a fazer movimentos as professoras das salas de baixo ou do lado não conseguem trabalhar”, explica Ana Sofia Freitas. Este é apenas um dos choques que o projecto de Guimarães tem com as limitações das escolas públicas, sejam com as condições físicas como a da EB1 Alto da Bandeira ou com as regras com que a tutela desenhou o modelo das AEC.
Os horários disponíveis para estes professores têm dimensão reduzida — a maior carga lectiva é de 12 horas semanais —, o que implica vencimentos relativamente baixos. Esse facto afastou alguns interessados, entre os quais candidatos com formação superior em Teatro e Dança. Apenas Ana Sofia Freitas, formada em Dança, e outro colega têm formação específica. Os restantes professores das AEC têm o curso de Educação Básica.
Outro problema colocar-se-á dentro de cerca de um ano: as colocações nas AEC são anuais. Nada garante, por isso, que estes professores, com a experiência que vão adquirir ao longo de um ano de trabalho e com a formação que estão agora a receber no âmbito deste programa, fiquem novamente nas escolas de Guimarães. A autarquia está ainda a estudar uma solução, que poderá passar por incluir esta experiência como factor de valorização do concurso público. Apesar de todos os constrangimentos, o Mais Dois é um compromisso para manter, “a menos que o Ministério da Educação mude as regras das AEC”, garante a vereadora Adelina Paula Pinto: “Enquanto a responsabilidade for da autarquia, vamos continuar com o projecto”.
In: Público
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