Com os exames na mira, o ensino vira-se para a transmissão de conhecimentos que se espera que os alunos sejam capazes de replicar, em detrimento da análise, da criatividade ou do pensamento crítico, processos cognitivos também absolutamente fundamentais.
Até que lá chegaram os exames. Foram em Sabrosa, e presidiu o senhor Inspetor, de sobrolho carregado. Deram-me a impressão de uma festa virada do avesso. Íamos todos de fato novo, botas novas, colcha branca em cima da jumenta e merenda nos alforjes. Nas últimas semanas tinha sido de caixão à cova. Mas também levávamos o programa na ponta da língua. O mestre dava o lamiré, e a música saía toda. Começávamos na primeira página do livro, e só parávamos no fim.
Torga, M. (2002). A criação do mundo (3.ª ed. completa, p.15). Lisboa: Publicações Dom Quixote. (1.ª edição: 1937)
Prometeu-se sucesso escolar. Foi garantido que os professores iriam trabalhar com mais rigor e qualidade. Apregoou-se que os exames eram a medida que comprovaria a sabedoria dos alunos e o trabalho dos docentes. E os exames foram generalizados a todos os níveis de ensino.
É já nesta semana, dias 7 e 10 de maio, que as nossas crianças do 4.º ano estão a fazer os seus primeiros exames. Penso que não os estarão a sentir como uma "festa virada do avesso", pois, ao contrário da personagem de Miguel Torga, não terão tido, sequer, a alegria de estrear roupa nova. Também não se estarão a fazer transportar de jumenta. Mas a maior parte tem mesmo que se deslocar à escola-sede do agrupamento.
Nas escolas (de todos os ciclos) vive-se uma enorme azáfama em torno dos exames, com docentes destacados, de há muito, para a sua preparação, na qual têm despendido muitas horas (umas pagas, outras não), e muitos outros ocupados desde há semanas na preparação das vigilâncias que agora estão a fazer. As reuniões têm vindo a multiplicar-se. A energia e o tempo dos professores em torno de toda esta burocracia limitam-lhes as condições para a profundidade com que gostariam de fazer o trabalho pedagógico e didático junto dos alunos.
Os alunos e as famílias têm vindo a sentir também grande preocupação. Notícias divulgadas há semanas indicavam um grande acréscimo de estudantes de 4.º ano a procurarem explicações.
Discordo, desde o início, desta ideia de exames no 1.º ciclo. Com os exames na mira, o ensino vira-se para a transmissão de conhecimentos que se espera que os alunos sejam capazes de replicar, com recurso à memorização e à compreensão, em detrimento da análise, da criatividade ou do pensamento crítico, processos cognitivos também absolutamente fundamentais. De forma mais ou menos oficial, é promovida a uniformização das aprendizagens, recaindo sobre questões que possam ser mensuráveis através de uma prova. Podemos imaginar as últimas semanas de aulas no 4.º ano (bem como nos outros que têm exames). A preocupação dos professores com o sucesso dos seus alunos terá, certamente, contribuído para homogeneizar o trabalho desenvolvido nas aulas, circunscrevendo-o ao que é antecipável que possa sair no exame. A realização de exercícios de provas de aferição terá marcado o quotidiano de muitas turmas.
Decidiu o MEC que os alunos de 4º ano fariam, na sua maioria, os exames nas escolas-sede de agrupamento, com a polícia a entregar as provas nas escolas no próprio dia. Para evitar a tentação de os docentes ajudarem os alunos, decidiu também o MEC que as crianças não seriam acompanhadas pelos seus professores, mas por docentes de outros ciclos de ensino, exceto de Português e de Matemática.
Tem sido prática das escolas e agrupamentos a realização de projetos de pré-integração dos alunos de 4.º ano nas suas futuras escolas de 5.º ano. Estas têm promovido atividades de receção, durante o 4.º ano, para que a transição se faça com menos ansiedade e sejam geradas expectativas mais positivas. No presente ano, o primeiro contacto das crianças de 4.º ano com a sua futura escola está a ser o exame, numa sala desconhecida, vigiado por desconhecidos. Desta forma, em exame estará, fundamentalmente, a capacidade de resistência destas crianças face a uma situação de stress.
Quanto aos alunos do 2.º e 3.º ciclos, estão a perder dois dias de aulas para cederem as suas salas e os seus professores aos exames de 4.º ano.
E que sentido se espera que deem os alunos do 4º ano ao resto das aulas do 3.º período, depois de se terem envolvido num enorme esforço de preparação para os exames (que afinal são ou não são?) finais? (Um parêntesis para salientar que esta caricata organização do ano escolar, com exames - finais? - a meio do terceiro período se alargará em 2013/2014 ao 6.º ano.)
Toda esta perturbação do clima escolar, toda esta sobrecarga dos docentes, todo este cenário de vigilância intimidatória sobre professores e alunos, todo o dinheiro gasto... em que contribuirão para a melhoria do ensino e da aprendizagem?
Por: Armanda Zenhas
In: Educare
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