A maioria dos alunos não conseguirá alcançar o que vai ser obrigatório em fluência da leitura, adverte investigadora
Num primeiro momento, a psicóloga educacional e professora da Universidade de Lisboa Dulce Gonçalves, especialista em dificuldades de aprendizagem, regozijou-se. Finalmente ia chegar, já este ano, às escolas portuguesas o que descreve como "uma técnica maravilhosa" - medir a afluência da leitura - para ajudar as crianças com dificuldades a acreditar que também elas são capazes. Mas a euforia esgotou-se mal começou a ler o documento das novas metas curriculares de Português para o ensino básico, já em vigor, e concluiu que afinal aquela técnica chegará às escolas portuguesas "da pior das formas".
Dulce Gonçalves sabe do que fala. Nos últimos três anos tem coordenado o projecto Investigação das Dificuldades para a Evolução da Aprendizagem (IDEA) da Universidade de Lisboa, no âmbito do qual tem acompanhado várias escolas, tendo na base a avaliação e o acompanhamento da evolução precisamente em fluência da leitura, embora não só. Os resultados foram apresentados em Junho, em Avis.
Na terça-feira, o IDEA voltou a promover novo seminário naquela vila alentejana, agora já na posse das novas metas curriculares, cujo aplicação este ano é já "fortemente recomendada" pelo Ministério da Educação e Ciência e que passarão a ser obrigatórias no próximo.
No 1.º ano todos os alunos terão de conseguir ler 55 palavras por minutos; no 2.º ano 90; no 3.º 110; no 4.º 125 e por aí fora. Dulce Gonçalves não tem dúvidas de que tal é "impossível" e aponta como exemplo os resultados apresentados esta semana em Avis. Aterradores. O método de medição proposto pelo ministério é o mesmo que tem sido utilizado pelos investigadores do IDEA. Mas bastou sobrepor uma linha aos gráficos que davam conta das avaliações feitas nas escolas parceiras do projecto para ver o que poderá acontecer: com os novos indicadores impostos aos alunos, pelo menos mais de metade dos estudantes de todas as turmas e escolas avaliadas não conseguiriam alcançar os descritores de desempenho em fluência de leitura que o MEC dá como obrigatórios em cada ano de escolaridade. Há mesmo casos, como o descrito no gráfico que acompanha este texto, em que nenhum alcançaria o objectivo.
Dulce Gonçalves frisa que entre os alunos avaliados não figura nenhum com necessidades educativas especiais e que nenhuma das escolas parceiras do IDEA se pode descrever como sendo problemática. Em vez de melhorar a qualidade do ensino e as aprendizagens dos alunos conforme anunciado, este tipo de descritores de desempenho incluídos nas metas curriculares vão levar a que "surjam novas dificuldades de aprendizagem", alerta a psicóloga, que desafia os pais a experimentarem fazer o que irá agora ser pedido aos filhos.
Não obedecer
O susto levou-a a abdicar do mês de férias para escrever um livro - Metas, Mitos e Desafios - onde aplica o que é proposto pelo MEC aos resultados da sua longa investigação. Considera que esta "é uma obrigação moral" para quem andou "tantos anos a estudar" estas matérias e alarga o desafio. Fê-lo, aliás, já em Avis, frente a uma plateia de professores: um documento como o das metas curriculares de Português "devia suscitar uma resposta de não-obediência por parte dos professores".
Segundo a psicóloga, o que irá passar a ser obrigatório, ao impor um critério único para todos, ignora "que o que caracteriza a escolaridade obrigatória é a diversidade e não o contrário". "Em vez de apontar uma faca, o ministério devia ter optado por fixar intervalos de valores", defende, lembrando que é isso que se faz, por exemplo, nos EUA, de onde vem precisamente esta técnica e onde "a medida de fluência de leitura é utilizada para perceber como os alunos estão a evoluir".
Mas há mais perigos, adverte. Não foram fixados os momentos em que a avaliação da fluência da leitura é feita, nem sobretudo quais os textos que serão propostos para esta avaliação. O que significa que "a complexidade dos textos propostos poderá ficar totalmente dependente do critério de cada professor", alerta. E finalmente, frisa, continua também sem se saber o que irá acontecer aos alunos que não atinjam as metas curriculares. Chumbam? A avaliar pelo que se indica repetidamente no documento das metas curriculares de Português, talvez seja esse o destino. Ali se indica que os objectivos e descritores de desempenho "indicados em cada ano de escolaridade são obrigatórios".
No seu livro refere, a propósito, que "a sanha do redactor das metas curriculares de Português foi tal que, para cada ano de escolaridade, se repete sempre a reafirmação desta obrigatoriedade". Uma imposição que, nota Dulce Gonçalves, não se encontra expressa, por exemplo, nas metas curriculares de Matemática.
In: Público online
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