1. Reconheço nada ter contra o lobo, o lince, o morcego, ou o bufo real, o koala, o leopardo das neves ou a arara azul mas, na verdade, de entre os animais em vias de extinção, preocupa-me que o bicho-carpinteiro não seja protegido. Não vos falo do escaravelho que, como roedor perseverante da madeira, é também conhecido como bicho-carpinteiro. Mas de um misterioso animal, com o mesmo nome, que – qual Zorro – tem preservado a sua privacidade a ponto de, habitualmente, os pais – ao referirem--se a ele, quando as crianças são vivas e trapalhonas – não o conseguirem definir pela sua forma mas, unicamente, pelos efeitos que parece provocar.
Não sei em que categoria taxonómica o bicho-carpinteiro se incluirá: será um anfíbio ou uma ave que se acanha de voar? Será um predador ou um discreto micro-organismo que rivaliza com as bactérias, com a particularidade de não ter um antídoto à sua altura (o que justificaria a verdadeira epidemia atípica de crianças que soçobram à sua nefasta influência)? Preocupa-me que falemos do bicho-carpinteiro e não saibamos onde vive, como acasala ou quantas células terá. Tem uma, como a amiba (que, apesar disso, se emociona) ou, dado o seu lado de obreiro, terá um punhado de neurónios, como as abelhas? Ainda assim, o bicho-carpinteiro, ao contrário do que os pais imaginam, é o melhor amigo dos brinquedos: depois de desmanchados, acrescenta-lhes (sempre!) mais umas peças e, ao leme dos gestos das crianças, não deixa que os seus quartos se acomodem, preguiçosos, aos excessos da arrumação.
Por mais que não pareça, o bicho-carpinteiro é o melhor amigo da escola: é pela sua generosa contribuição que elas parecem ter a vista na ponta dos dedos, levando-as a supor que só se conhece no que se toca e que cheirar, escutar e sentir é sempre melhor que ver. E não fosse terem de ser consertadinhas e sossegadas em cada aula, e o bicho-carpinteiro não vacilava entre mordiscar as unhas ou os lápis das crianças (o que só é possível quando as aulas compridas esticam a sua paciência e lhe põem a barriga à razão das horas).
2. Apesar dos seus inestimáveis contributos para a vida das crianças, há quem queira o bicho-carpinteiro a ‘engonhar’, menos atrevido e, até, compenetrado. Ora esta ideia de que as crianças saudáveis, sejam quantas forem as horas que a escola as empanturre com aulas, seja qual for a magia de um professor que as cative, o número de colegas – vivos ou adoentados – que se acumulem numa sala, ou as preocupações que se atrevessem no seu coração, as crianças tenham de estar sossegadas é que preocupa. Presumir que crianças sossegadas são, por inerência, atentas deixa-me atónito.
E, pior: medicar sem critério – transformando o bicho-carpintério numa bactéria multirresistente e a escola no seu exterminador implacável – confundindo crianças dopadas com crianças atentas, põe-me à beira da ira. Sobretudo porque receio que não haja crianças hiperativas mas adultos com défices de atenção.
3. Será possível que crianças vivas, educadas em famílias cada vez mais democráticas (e que, por isso, não crescem confundindo medo com respeito), cada vez com menos tempo para brincar, com menos espaço nas suas casas e nos seus bairros, com mais compromissos escolares (que, se os pais utilizarem toda a oferta que a escola lhes disponibiliza, podem lá estar 55 horas por semana) sejam ainda mais sossegadinhas? Não estaremos a esticar, de tal forma, a vitalidade das crianças que, expondo-as a um stresse cumulativo tão absurdo, só as podemos tornar agitadas para que depois, como quem tenta consertar estragos a correr, as tentemos sossegar com uns aditivos químicos? Acho que sim.
Será razoável que, por tudo e por nada, se diagnostique hiperatividade nas crianças e, em consequência disso, sejam medicadas, anos a fio, com intervalos de «desintoxicação» durante as férias, sem que se ponderem os efeitos secundários que uma tal utilização tem? Não. Ainda assim, existem crianças hiperativas? Sim. Como se manifestam, então, essas crianças doentes? Com uma agitação hemorrágica, estejam onde estiverem ou quem estiverem, que as faz, em cada momento, esvaírem-se em angústia como se, ao serem paradas, parecessem soçobrar e morrer. Serão essas as que parecem amigas do bicho-carpinteiro? Não...
Por: Eduardo Sá
In: Pais & Filhos
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