A apetência do Governo por ter cada vez menos responsabilidades sociais vai de passo síncrono com a ânsia caciqueira de mais poder por parte dos autarcas.
A municipalização da educação está a ensaiar os primeiros passos em contexto estratégico favorável, prudentemente escolhido, já que os professores não pensam senão nuns dias de férias, depois de afogados em trabalhos de exames, que culminaram um ano particularmente desgastante.
Foi Poiares Maduro, que não o ministro da pasta, que anunciou, na Comissão Parlamentar de Ambiente, Ordenamento do Território e Poder Local da Assembleia da República, em Março passado, a intenção de o Governo entregar a gestão da educação a dez municípios-piloto. Na altura, não clarificou o que entendia por gestão da educação. Tão-só disse que a intenção do Governo era descentralizar. Mas descentralizar, verbo transitivo que significa afastar do centro, não é panaceia que traga automática melhoria ao sistema. O experimentalismo descentralizador dos últimos anos no que toca à colocação de professores e o cortejo inominável de aberrações e favoritismos que gerou é um bom exemplo de que muitas vertentes da gestão do ensino devem permanecer centralizadas. Justifica-o a pequena dimensão do país, a natureza dos compromissos, legais e éticos, assumidos pelo Estado face a um vastíssimo universo de cidadãos e as economias de escala que as rotinas informáticas permitem. Quanto aos aspectos que ganharão, e são muitos, se aproximarmos a capacidade de decidir ao local onde as coisas acontecem, não deve o poder ser entregue às câmaras, mas aos professores e às escolas. Justifica-o a circunstância de estarmos a falar da gestão pedagógica. Porque quem sabe de pedagogia são os professores.
Há um fio condutor para esta proposta, qual seja o de impor à Educação nacional o modelo de mercado, agora de mercado municipal. Trata-se de transformar o acto educativo em produto de complexidade idêntica à rotunda ou à piscina municipal. Quer-se apresentar a Educação como um simples serviço, circunscrito a objectivos utilitários e instrumentais, regulado prioritariamente por normas de eficiência. Querem exemplo mais escabroso que o convite para que as câmaras cortem professores, até ao limite máximo de 5% do número considerado necessário, a troco de 12.500 euros por docente abatido?
Este é mais um passo que concretiza a estratégia empresarial e tecnocrática que o Governo tem para a Educação, bem fixada pela elitização do ensino, que o “dual” postula para as crianças de dez anos que reprovem duas vezes, pela adopção de pedagogias de adestramento, de que a hiperinflação dos exames é exemplo, e pelo contributo generoso para a introdução de linhas de montagem no ensino, que os monstruosos mega-agrupamentos tipificam. A municipalização, com os pressupostos conhecidos de distribuição de competências, implode de vez a propalada autonomia das escolas e abre portas a iniciativas partidárias de que temos sobeja demonstração empírica, via experiência já colhida de intensa introdução de jogos políticos no funcionamento dos conselhos gerais. Cruzada com as intenções (e o financiamento cativo em sede de Orçamento do Estado) que foram anunciadas quanto ao cheque-ensino, poderá repetir no país o que se verificou na Suécia, com a criatividade activa dos grupos económicos a explorarem o “negócio” até que, anos volvidos, se reconheça a sua falência.
Diz-se que a generalização só se efectivará se uma avaliação, cujo modelo é desconhecido, a recomendar. Os exemplos, velhos e recentes, atestam o valor que a intenção tem. Veja-se o que se acabou de fazer com a avaliação dos centros de investigação. Recorde-se como a experiência do ensino dual passou, vertiginosamente, sem qualquer avaliação, de 10 para 300 escolas. E olhe-se, com um sorriso complacente, o “empreendedorismo” voluntarista que já se esboça: o presidente da Câmara de Óbidos já anunciou Filosofia para os alunos do 1.º ciclo do básico, yoga para os do jardim-de-infância e golfe e “eco design” para os do secundário.
Embora a lei não o permita e de momento apenas se fale numa autorização para os municípios recrutarem pessoal docente para projectos específicos locais (lembremo-nos da contratação de professores de Inglês a quatro euros à hora, feita por empresas intermediárias, nos tempos de José Sócrates), a eventual passagem para as autarquias da responsabilidade de gestão e pagamento aos professores traz à colação a falência técnica de muitas câmaras, os atrasos, muitos, verificados para com professores de actividades extracurriculares e o receio de novas discricionariedades ditadas pelo caciquismo e pela promiscuidade entre câmaras e órgãos unipessoais de direcção das escolas.
Os que se têm movido para desregular o sector por esta via, sem que nenhuma fundamentação empírica o justifique, dão um passo substancial. A saúde move-se já no mesmo sentido, dando razão ao pensamento de Foucault, que nos ensinou que os governos ditos liberais promovem a dissipação do Estado pulverizando mecanismos de controlo e tutela por toda a parte. Ou dito de outro modo: a apetência do Governo por ter cada vez menos responsabilidades sociais vai de passo síncrono com a ânsia caciqueira de mais poder por parte dos autarcas. Com esse engodo, os autarcas acabam promovendo políticas a que se oporiam se a iniciativa partisse do Governo central. E o Governo central subtrai-se, maquiavelicamente, aos protestos que as suas políticas originam. E há quem fale de ausência de estratégia!
Por: Santana Castilho
Professor do ensino superior (s.castilho@netcabo.pt)
In: Público
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