Se a municipalização fosse para melhorar a Educação, não seria de esperar que se começasse pelos municípios com mais problemas?
Conheceram-se nos últimos dias os contornos do novo estratagema governamental para, em colaboração com diversas autarquias, levar o conceito de Educação Low Cost a novos patamares de “eficiência”.
A partir de uma proposta inicial do ministro Poiares Maduro, cerca de uma dúzia de autarquias está em negociações com o actual Governo para uma transferência de competências mais alargada na área da educação, num modelo que se apresenta como de “escolas municipais”, sejam criadas de base, sejam geridas a partir do poder local.
O argumento é o da bondade de uma gestão de proximidade que será de maior eficácia e mais fácil responsabilização por parte dos cidadãos. Em defesa dessa tese apresentam-se enunciados de fé e nenhuma fundamentação empírica. Pelo contrário, os responsáveis pela tese fogem com estrépito sempre que se pede para darem exemplos não anedóticos que demonstrem que essa solução levou, além-fronteiras, a uma melhoria do desempenho do sistema educativo no seu todo e à prestação de um melhor serviço público aos alunos. Basta acenar-se com um ou dois casos muito claros de insucesso deste tipo de reformas (a Suécia é o exemplo mais recente de inversão da localização das políticas educativas) ou de resultados pouco relevantes (a Inglaterra não revela especiais progressos, apesar da expansão das autoridades locais na área da educação) e a conversa resvala logo para a questão dos “princípios” ou da “eficácia financeira”.
Mas, neste momento, temos acesso directo aos documentos que servem de base à negociação entre o MEC e algumas autarquias, indo eu servir-me em seguida do "memorando de trabalho" do Programa Aproximar Educação destinado a alcançar um contrato de educação e formação municipal com a autarquia de Matosinhos, presidida pelo independente (ex-PS) Guilherme Pinto.
De acordo com esse memorando, pretende-se uma “descentralização, por via de delegação contratual, de competências na área da educação e formação, dos serviços centrais do Estado para os municípios”. De acordo com o texto, esta iniciativa “ baseia-se em algumas premissas potenciadoras da eficiência e eficácia: subsidiariedade, proximidade, co-responsabilização, racionalização dos recursos e democratização”. Como se não chegasse este pedaço de prosa para se perceber que estamos a entrar em terreno pantanoso e nevoento, acrescenta-se ainda que se aproximam “objetivos que se traduzem numa verdadeira articulação estratégica do ensino, pretendendo-se aprofundar a responsabilidade dos municípios no compromisso com a educação, reconhecidos não só pelos resultados escolares, pelo desenvolvimento humano, mas também pelos seus valores”.
Em bom português, isto quer dizer… nada.
Porque, no caso presente e nos restantes, o que está em causa é definir um modelo de financiamento desta transferência de competências, o qual surge com clareza num anexo 3, cheio de fórmulas de eficiência, valores médios, números esperados e tudo o que representa a redução da Educação a economias de escala. A teoria da proximidade e descentralização cai pela base quando se lê (p.3 do dito anexo) que, “uma vez que o processamento dos salários do pessoal docente passará a ser centralizado, a componente de financiamento estará ligada à boa gestão dos recursos docentes”. O que interessa é centralizar a gestão dos recursos docentes e torná-la mais eficaz.
E como se faz isso? A fórmula é simples… por “eficiência” entende-se a existência de um número real de docentes, inferior ao dos que seriam teoricamente necessários. É mesmo isso que está no dito anexo em negociação para Matosinhos, que depois concretiza com números.
De acordo com as fórmulas ideais são necessários 1473,5 (!) docentes para o concelho, estando actualmente em exercício 1674,1 (?), dos quais 63 pediram aposentação. Retirando-os do diferencial de 198, restam 135 que, ao que parece, não serão necessários. No documento é afirmado que o “MEC partilha 50% do diferencial do n.º de docentes em valor (referencial do valor docente - índice 151: 25.000€) desde que esse diferencial não ultrapasse 5% dos docentes que se estima como necessários”, o que significa que mais 70 professores poderão estar em risco de serem “desnecessários (5% dos tais 1473) e renderem 875.000 euros à autarquia.
Nuno Crato já surgiu, entretanto, com o apoio de uma reunião com a FNE, a dizer que nada disso se passará durante o seu mandato. E foi muito cuidadoso ao referir isso. E ficamos a perceber que é uma garantia de curto prazo.
Mas… pensemos que as autarquias têm técnicos superiores com habilitações para dar aulas, embora não profissionalizados. E outros técnicos… Já viram como será fácil, usando a teoria dos técnicos especializados para dar os cursos profissionais e vocacionais, colocá-los a dar umas quantas horas semanais de aulas nas escolas sob gestão municipal? Percebe-se o esquema que permitirá atingir “números reais” muito mais “eficazes”, sem que esteja em causa qualquer preocupação com a qualidade do serviço público prestado, mas apenas uma negociata entre o poder central (que desorçamenta despesa) e o poder local (que encaixa receita por cada professor a menos).
Por fim, e este é um detalhe curioso, nenhuma das autarquias que parecem mais interessadas no negócio correspondem, de acordo com o recente Atlas da Educação coordenado pelo ex-ministro David Justino, a municípios integrados nos clusters com um desempenho problemático ao nível do ensino básico. Pelo contrário, estão todos nos clusters que se distinguem pelo sucesso escolar e pela baixa retenção.
Se a municipalização fosse para melhorar a Educação, não seria de esperar que se começasse pelos municípios com mais problemas?
Por: Paulo Guinote
Professor do 2.º ciclo do ensino básico
In: Público
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