Setenta por cento dos docentes do 1.º ciclo dizem que ler livros ou revistas por iniciativa própria tem “muita” ou "bastante" influência na forma de ensinarem. Mais do que a formação inicial.
Na escola, a literatura não está a ser suficientemente explorada como forma de aprender a língua e como ponte para outras formas de arte. Nos jardins-de-infância, é preciso incentivar a curiosidade, para que no futuro os meninos sejam “questionadores” e não “reprodutores de conhecimentos”. No 1.º ciclo, os professores têm dificuldade em lidar com estudantes que enfrentem obstáculos na leitura e a esmagadora maioria socorre-se mais do autodidactismo para ensinar do que da formação inicial. Com os cortes no sector da Educação, a escola vai ser cada vez menos inclusiva. Estas foram apenas algumas das ideias defendidas nesta quinta-feira por autores de várias publicações e estudos da Fundação Francisco Manuel dos Santos.
No estudo Ensino da leitura no 1.ºciclo do ensino básico – crenças, conhecimento e formação dos professores, um dos autores, João Lopes, da Escola de Psicologia da Universidade do Minho, percebeu que há dificuldades dos docentes do 1.º ciclo na avaliação dos obstáculos que os alunos revelam na leitura e nas intervenções a adoptar. A conclusão foi retirada de questionários feitos numa amostra de 512 professores, “com representatividade nacional”. Neste aspecto do questionário, os docentes americanos tiveram melhor desempenho, enquanto os portugueses acham que estão mais preparados do que na realidade estão.
Por outro lado, os docentes portugueses do 1.º ciclo abrangidos pelo estudo dizem que, quando leccionam, recorrem mais ao autodidactismo do que à formação inicial. Questionados sobre que factores poderão ter influenciado a actual forma de ensinar a leitura e a escrita, 70% dos docentes consideram que o autodidactismo, que inclui a leitura de revistas e livros por iniciativa própria, é o factor que mais se destaca, com "muita" ou "bastante" influência. Seguem-se as aprendizagens com colegas (64%) e as acções de formação contínua (62%). O ter ensinado numa determinada escola (35%) e a formação pós-graduada (28%) são as menos referidas. Esta última é mesmo referida por 44% dos participantes como tendo "nenhuma ou quase nenhuma influência".
O autodidactismo preocupa João Lopes por ser “muito permeável a coisas erradas do ponto de vista científico”. No estudo, pode ler-se que o autodidactismo levanta "algumas interrogações", porque aumentará "a probabilidade de cada professor ensinar à sua maneira".
Outro aspecto salientado pelo investigador prende-se com o facto de, num bloco de duas horas de Português, os docentes privilegiarem a leitura, a compreensão e a escrita de texto, mas valorizarem menos a literatura e a ortografia.
“Desastres pedagógicos”
A questão da literatura cruza-se com um outro estudo apresentado -Literatura e Ensino do Português -, que se centrou sobretudo no ensino secundário e do qual o docente de Letras da Universidade de Coimbra (UC), José Cardoso Bernardes, é co-autor. Defende que é necessário “aproveitar melhor o que a Literatura pode fazer pelos alunos na escola” e que o ensino da Literatura tem sido feito de uma forma “relativamente conservadora”. Os autores entendem que “se pode tirar um partido diferente dos textos literários” não só no que toca à aprendizagem da língua, mas também, por exemplo, na relação com outras artes: “O texto literário é uma excelente porta de acesso a artes como a pintura, a escultura, a arquitectura, a música”, diz.
José Cardoso Bernardes sublinha que, para ensinar literatura, é preciso gostar: “Ler expressivamente um texto é decisivo para fazer os alunos gostarem dele. Ler expressivamente um texto implica interiorizá-lo, compreendê-lo e gostar dele.” E acrescenta: “O que os escritores produzem necessita de um suplemento de afectividade, de gosto que os professores ou tentam adquirir, ou podem converter-se em desastres pedagógicos, não há dúvida.”
Mas a “motivação para a literatura, para a leitura, para a escrita” começa em tenra idade, defende a docente da faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da UC, Filomena Gaspar, uma das autoras do estudo A Ciência na Educação Pré-escolar, que se debruçou sobre a questão da “promoção da literacia científica em contexto de jardim-de-infância”. A autora concluiu que as salas do pré-escolar são “medianamente amigas das ciências”, mas há lacunas e também discrepâncias entre jardins-de-infância.
Esta investigadora defende a importância, no pré-escolar, da Ciência que contribui para “responder àquilo que é a curiosidade natural da criança”: “Quando coloca questões, quando quer saber o porquê. Isto tem de ser desenvolvido e não deve de forma alguma ser contrariado.”
Para Filomena Gaspar, esta questão não está desligada da inclusão, uma vez que as crianças que beneficiem destes incentivos vão estar mais “motivadas para o saber” do que as que não beneficiem. A ideia é que apostar na Ciência, nas perguntas, nas experiências, na formulação de hipóteses, vai fomentar a criatividade e a curiosidade acerca do mundo: “Queremos crianças questionadoras, não queremos reprodutoras de conhecimento.”
Porém, sobre a questão da inclusão, o presidente da Pró-Inclusão – Associação Nacional de Docentes de Educação Especial, David Rodrigues, não tem dúvidas: o Orçamento de Estado para 2015, com um corte de 700 milhões de euros no sector da Educação, não a promove: “A escola inclusiva não funciona se não tiver mais recursos”, diz o co-autor (ver entrevista ao lado) da publicação A Inclusão nas escolas.
Crianças portuguesas passam mais tempo na escola
A publicação Acesso ao Ensino Superior, da investigadora inglesa Claire Callender, e o estudo Os tempos na escola, da autoria de Isabel Festas, da Universidade de Coimbra, são outras investigações que a Fundação Francisco Manuel dos Santos apresentará em breve.
De acordo com um resumo dado nesta quinta-feira aos jornalistas, no casod’Os tempos na escola, a investigadora debruçou-se sobre a “situação de Portugal, relativamente a outros países europeus e asiáticos, quanto ao peso da carga horária durante a escolaridade obrigatória”. Entre os resultados “mais significativos”, estão “algumas diferenças que Portugal apresenta relativamente aos outros países estudados, como a que se refere à superioridade dos seus tempos lectivos no 1.º ciclo do ensino básico e aos lugares do Português e da Matemática neste mesmo ciclo”. “Muito tempo, mas não é produtivo”, acrescentou o coordenador da área de Conhecimento da Fundação, Carlos Fiolhais.
No mês da Educação, a Fundação promove uma série de conferências, entre as quais Acesso ao Ensino Superior, nos dias 12 e 13 de Novembro, em Vila Real e Lisboa. Mas haverá mais conferências, durante os meses de Outubro e Novembro, sobre outros estudos na área da Educação – o programa completo pode ser consultado no site da Fundação.
In: Público
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