Já há muitos anos que a sociologia acolheu a “teoria dos papéis” que, dito de forma muito elementar, defende que ao ocuparem posições sociais, as pessoas veem o seu comportamento determinado não tanto pelas suas características individuais mas pelas expectativas face à posição que ocupam.
Esta teoria está embutida nos valores do nosso quotidiano e efetuamos julgamentos com base no papel que achamos que as pessoas deveriam desempenhar. Diz-se por exemplo “esta atitude não é de um professor”, “esta frase nem parece de um médico” ou “não esperava isto de uma pessoa com esta formação”. Assim, temos espectativas sobre que as atitudes, discursos, e ações das pessoas devem ter em função do “papel social” que lhes atribuímos. Esta teoria dos papéis – imaginada como se o mundo fosse um grande teatro em que cada pessoa tem a seu papel distribuído – cria espectativas sobre quem deve fazer o quê. E se cria estas expectativas também as desencoraja. Diz-se: “Quem te mandou meter nisso? Isso não era contigo”. Quando alguém pretende denunciar um comportamento incorreto sempre e ouvem conselhos” Não te metas nisso: quem se devia preocupar está quieto, para que vais arranjar problemas?”. A teoria dos papéis dá a palavra mas também tira a palavra.
Compreende-se quão conservadora se apresenta hoje esta perspetiva: sendo cumprida defende “cada macaco no seu galho” e que a uns compete pensar e fazer algumas coisas e a outros pensar e fazer outras., “Não se meter onde não se é chamado” é uma forma de desqualificar pessoas para o debate de muitos assuntos que lhes dizem respeito ainda que não esteja no seu papel tradicional pronunciarem-se sobre elas.
Sabemos hoje que um dos valores que é mais importante reforçar na nossa democracia é a participação. Reformar as instituições de forma a incentivar os cidadãos a participar nas decisões da vida comum é essencial para assegurar a credibilidade de um sistema em que as maiorias são cada vez mais minorias (veja-se o resultado das eleições) e que o se chama vontade do povo está frequentemente contaminada por poderosas campanhas de informação visando a condução das vontades e dos votos. E, se objetivo é aprofundar a democracia participativa, é cada vez mais óbvio que não podemos ficar ancorados nesta perspetiva dos “papéis sociais”. Participar significa que um cidadão possa intervir e contribuir para a decisão sobre gestão autárquica e comunitária, sobre a escola, na política local, nas acessibilidades, nos estacionamentos, do plano de ordenamento urbanístico, enfim em todos os assuntos que dizem respeito à sua vida e a da sua família na comunidade sem que alguém lhe diga “esse assunto não é consigo”. A democracia participativa significa que todos estão qualificados a participar e fazer propostas a partir do que sabem e do que querem saber.
E quando se desenvolvem processos com estas características começam a aparecer as surpresas. Surgem pessoas cujo papel social nunca lhes permitiria ter voz ativa na resolução de um assunto, a participar e a contribuir pertinentemente para a encontrar e desenvolver soluções. Estes são os “protagonistas improváveis” – aquelas pessoas a quem, à partida, não estava atribuído o papel de participar e de desenvolver certos tipos de ideias e de atuações mas que, no final, são elas que mais determinadamente e competentemente o fazem. Quantas vezes encontramos à frente de processos de solidariedade e de gestão comunitária, cidadãos cuja estrita leitura do seu papel social tornaria estranha a sua participação.
Há pouco tempo, quando participava numa reunião com professores sobre as políticas de inclusão tive uma surpresa: eram duas professoras do ensino regular que dinamizavam as iniciativas mais significativas de inclusão de alunos com deficiência na escola. Toda a escola esperaria que fossem os professores de Educação Especial que tratassem com mais detalhe da organização dos momentos de inclusão educativa, mas… estas duas professoras assumiram-se como “protagonistas improváveis”, as pessoas que não se confinaram ao seu papel; que não disseram “Alunos com deficiência? Não é comigo, é com a Educação Especial”. Tomaram a iniciativa para fazer aquilo que acreditaram que era necessário e justo. E fizeram.
E, pensado melhor, estamos rodeados de protagonistas improváveis: pessoas que, se se fosse a ver bem, não seriam elas que deveriam encabeçar processos de liderança, processos de mudança e de inovação. Muitas vezes estas pessoas têm que se chegar à frente porque as pessoas prováveis (as pessoas responsáveis e indicadas) estão demasiado acomodadas e amorfas. A ação destes protagonistas improváveis – as pessoas que rompem com a estreiteza dos papéis sociais – é fundamental para dinamizar e inovar as nossas sociedades e constitui uma lídima prova de democracia participativa.
Hoje celebro todos estes protagonistas improváveis: as pessoas que contra todos os “bons conselhos” que as aconselhavam a ficar quietas e caladas se chegam à frente, encabeçam processos, projetos, reformas e movimentos que se não fossem elas ficariam à espera que alguém “de direito” assumisse. Hoje gostaria de incentivar todas as pessoas a encontrar força, motivação e ânimo para se levantarem pelo que acham que é justo e para não tolerarem e calarem o que acham injusto. Mesmo que estejam sempre a ouvir: “Isso não é contigo… eles que se arranjem”.
“Isto” é com todos os protagonistas só que uns são prováveis e outros são improváveis.
Por: David Rodrigues
Professor universitário e presidente da Pró-Inclusão - Associação Nacional de Docentes de Educação Especial. O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico.
In: Público
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