Foi em setembro que te conheci, Clarinha!
Conheci-te numa quinta-feira.
Estudado o teu processo, verifiquei que tinhas a síndrome do "Crie du chat" uma síndrome rara e de baixa frequência a nível nacional.
Antes de te conhecer melhor, falei com a mãe Lúcia. Fiquei fascinada com o orgulho com que ela falou de ti e com perfeita consciência da tua sintomatologia.
Quando cheguei à tua escola (eu fazia o território), estavas tu deitada ao fundo da sala com uma manta velha por cima. Nas tuas mãos tinhas imensas páginas de revistas. Não para as leres com é óbvio, porque ainda hoje não sabes ler, mas porque faz parte de uma das particularidades da tua sintomatologia andar sempre com algo na mão desde panos, folhas, revistas...
Recordo-me que não falavas, emitias sons e gestos que traduziam as oscilações do teu estado de espírito.
A professora da turma do ensino regular de então utilizou todas as estratégias possíveis para a tua aprendizagem. Todavia, como estiveste tantos anos habituada a estar deitada, era muito difícil contrariar os teus hábitos. Por vezes, lá te levantavas, percorrias a sala e apropriavas-te, inocentemente, dos materiais dos teus colegas.
Durante este ano, nunca tive o apoio de uma auxiliar. Contigo, Clarinha, foi tudo mais difícil. Tinha de tratar da tua higiene diária, mudar-te a roupa quando fazias chichi. Confesso que me custou muito, principalmente tratar da tua higiene pessoal. Só o tinha feito com a minha filha. Porém, à medida que me fui afeiçoando a ti, esta tarefa foi-se transformando numa cumplicidade ainda maior entre nós.
Antes desta conquista entre nós, as perguntas habituais assolavam novamente a minha mente.
Como chegar à ti, Clarinha? Como te cativar?
Comprei imensos materiais atrativos para despertar a tua atenção, mas tu recusavas-te a trabalhar. Ficavas hilariante quando eu o fazia por ti! Sempre gostaste de "mandar" numa tentativa de imitação do adulto. Mas depois, cansavas-te e voltavas para o teu "canto" sempre deitada.
A minha forma de ser e até mesmo a minha experiência diziam-me que "era pelos afetos...". Contudo, o tempo passava e debatia-me com a impotência de não ser capaz. Sabes, Clarinha? Não conseguia sentir-me à tua altura, achava que estava a falhar, daí o meu investimento pessoal em tantos materiais... tu escapavas-me! Até "àquele dia".
Lembras-te, meu anjo (gosto muito de vos tratar por anjos, porque em boa verdade é aquilo que vocês são!)
Naquele dia, naquela quinta-feira, passei a deitar-me contigo. Senti-me tão "estranha", porque estávamos as duas em plena sala de aulas do 4.º ano com a tua professora e com os teus "amiguinhos" que não paravam de olhar para mim completamente desconfiados. Posso dizer-te que foi mesmo constrangedor, mas passou... o importante foi ter-te cativado e tu a mim, tal e qual como na história do "Principezinho"!
Passei muitas horas deitada contigo, Clarinha, mas foi nesta nossa proximidade afetiva que construímos, até hoje, a nossa cumplicidade que só os anjos entendem.
Nesses momentos, os meus pensamentos turbilhonavam para te tentar arranjar estratégias que te interessassem. Enquanto pensava, falava sempre contigo, muito, muito baixinho para não perturbar a aula da tua turma. Contava-te histórias quase todas elas inventadas no momento, isto porque até as histórias mais infantis dos livros eram muito complexas para ti. E nas histórias que te contava, tu eras sempre a protagonista. Eram sempre centradas em ti e na tua família, área que tu dominavas muito bem. Sempre que falava ou de ti, ou da mãe, do pai ou da tua mana, tu batias muitas palmas como forma de reconhecimento das personagens. Aprendi, assim, a ler, através dos teus sons e do teu gesticular aquilo que realmente te fazia feliz.
Nos dias de sol, levava-te para o recreio para passearmos, exercitando, assim, o teu andar e o teu equilíbrio. Na hora do lanche, cantava-te cantilenas muito, mas muito fáceis de aprender e muito lentamente começaste a "cantar". No baloiço que adoravas, cantávamos muito alto para mostrar ao mundo a tua/nossa verdadeira felicidade.
Todavia isto só acontecia às quintas-feiras de manhã. Quando voltava na semana seguinte, lá estavas tu deitada. Ficava desolada ao ver-te assim e pensar que todos os outros dias eram assim. Mas mal me vias, ficavas eufórica.
Eu precisava mais de ti, Clarinha, era impossível continuares assim. Falei com os teus pais e fiz-lhes uma proposta que eles acalentaram de imediato. Essa proposta passaria pela sua autorização para frequentares a minha sala especial, na sede do agrupamento. Falei com o presidente do Conselho Executivo, que se mostrou logo recetivo. Contigo veio a Katy - a auxiliar- mas só às quintas-feiras. A Katy, que ainda hoje, felizmente, trabalha connosco, é daquelas pessoas raras que parecem ter nascido para acalentar estes, agora nossos, meninos.
Ao fim de poucos meses, a tua evolução, Clarinha, espantou tudo e todos. Os teus pais nem queriam acreditar. Começaste a desenvolver a linguagem, o equilíbrio, as regras de bom comportamento e aprendeste muito com os outros meninos através da imitação e da troca constante de gestos de ternura. Mas trabalhar... não era contigo, minha malandreca!
Gostavas de me imitar enquanto professora e eu, aproveitando essa área, nomeei-te Professora Clara.
Hoje feliz, já pedes para ir à casa de banho, já não te babas porque a professora Manuela não gosta, já andas, já te equilibras e continuas com a tua tarefa de Professora.
O que mais me impressiona em ti, minha querida, é a tua forte capacidade de ler os sentimentos das pessoas. Sendo eu uma pessoa como outra qualquer, há dias que estou mais triste, mas quem me conhece sabe que raramente o demonstro. Só tu... Só tu, Clarinha, me lês a alma. Quando entro na sala, damos todos um beijinho de bom dia e distribuímos tarefas, é o momento da planificação que antecede a execução das atividades previstas para o dia. E tu sempre a observar-me, Clarinha, e quando me sentes "triste" sentas-te ao meu colo e dizes-me:
- A tutora ta tite.
Eu imediatamente para não te preocupar faço-te cócegas para te provar que estou muito bem. E tu insistes:
- Tá tite, ta!
Como é possível? Como? Aquela criança ser tão sensitiva, é a única capaz de ler o meu estado de espírito.
São assim, as crianças especiais!
Por: Manuela Cunha Pereira
In: Educare
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