A questão central é de que maneira se pode usar a competição de uma forma ética, não-discriminatória, cidadã, equitativa e inclusiva.
Vivemos numa fase aguda e inflamada de competição. Mas não vivemos sempre? Acho que sim, mas agora estamos mais lançados e mais inspirados para louvar a competição. Esta “busca simultânea de um indivíduo ou grupo por uma vantagem, vitória ou prémio” (Aurelio dixit) elegeu-se como a prova suprema de qualidade em múltiplas áreas da nossa sociedade. “Ganhou? ´É porque é bom! Perdeu? É porque é mau!”
E como contestar isto? Será legítimo menosprezar o valor de quem ganha uma competição? Não estaremos a desencorajar o mérito e a incentivar o comodismo e a falta de ambição? Antes de aceitarmos que a competição é a prova inquestionável que conduz inelutavelmente à qualidade, gostaria de problematizar alguns aspetos.
1. O argumento “evolucionista” é muito frequente. Quem ganha e sobrevive são os mais fortes e quem é fraco desaparece. Mas… não é certo que a competição seja a chave da evolução. Um evolucionismo precipitado e que leia literalmente a expressão “seleção natural” conclui que são os mais fortes que vencem os mais fracos, isto é, que são os vencedores da competição que conseguem sobreviver. Isto só muito parcialmente é verdade. Quem sobrevive não são os fortes, são os adaptáveis, aqueles que melhor se adaptam. Portanto, o objetivo da competição é saber quem consegue responder melhor às condições do envolvimento e não identificar quem é mais forte e mais fraco. Nesta competição a lagartixa ganha ao Tiranossauros rex.
2. As grandes conquistas da humanidade foram fruto da cooperação mais do que da competição. As guerras, as batalhas, a prosperidade e a prevalência das nações são grandes epopeias coletivas em que, se não houvesse cooperação, não se teria conseguido atingir o objetivo. Mesmo no desporto isso se verifica. O melhor jogador de futebol do mundo não consegue vencer uma equipa sozinho, por muito fraca que ela seja. Assim, a cooperação é mais a chave do progresso do que a competição.
3. A competição rarissimamente é uma verdadeira competição. Quase sempre a posição final dos competidores poderia já ser prevista no princípio do processo. Há surpresas, claro, que há! Mas não são fruto da competição: são fruto de um conjunto de acasos que inclui a sorte de uns, o azar de outros e um conjunto de circunstância que foram imprevistas ou mal previstas. Assim, em grande medida a competição não é mais do que a legitimação de uma seriação que já existia à partida. Digamos que a competição é, em grande medida, a legitimação e o espetáculo da vitória, da vantagem sobre o outro.
4. A competição serve como emulação, como motivação para o progresso. Parece inquestionável que sim. Mas a que custo? Qual o destino dos perdedores? Submetem-se, conformam-se, resignam-se, aceitam a sua inferioridade. E, “já agora”, quais são os custos sociais de uma ínfima minoria de vencedores e uma esmagadora maioria de perdedores? Talvez nunca saibamos ao certo, mas não é difícil imaginar quantas pessoas, por medo de perder ou por terem perdido, não conseguem fazer desabrochar todo o seu potencial.
A competição tem a ver com superação (individual ou coletiva) e isso é intrinsecamente positivo. Superar, ir mais além, concretizar sonhos é um extraordinário dínamo da nossa vida pessoal e social. Negar, pois, as virtualidades da competição é imprudente e ingénuo. A questão central é de que maneira se pode usar a competição de uma forma ética, não-discriminatória, cidadã, equitativa e inclusiva. Por exemplo, é muito mobilizador competir com os países com um desenvolvimento análogo ao nosso sobre qual de nós consegue melhores resultados no combate à pobreza, no acesso à cultura, no financiamento da investigação científica, na diminuição do insucesso escolar, na erradicação do abandono escolar, na eficácia das políticas inclusivas, etc. etc. O frémito de ir mais além é uma força formidável que anima pessoas e sociedades. Que nos anima a cada um de nós. Mas esta força, por inevitável e óbvia que se apresente, não está isenta de uma reflexão sobre os seus processos e os seus objetivos. E aqui se agiganta o mercado, a ideologia prevalecente do “mercado” que nos restringe a uma competição que em tudo é o oposto de uma sociedade equilibrada, uma sociedade justa e uma sociedade igualitária.
Vale a pena refletir sobre qual o papel da competição na Educação, de como é que a ideologia do mercado a influencia e tantas vezes prevalece. Certamente a promoção de uma Educação de qualidade para todos passa por saber como se criam, como se desenvolvem e sustentam ambientes educativos de superação numa perspetiva de equidade e de cidadania.
Por: David Rodrigues
Professor universitário, presidente da Pró-Inclusão – Associação Nacional de Docentes de Educação Especial
In: Público
In: Público
Sem comentários:
Enviar um comentário