terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

SER ALGUÉM

Há já muito tempo andei numa escola. Agora, de vez em quando, lembro-me da escola onde andei há muito tempo.

Os professores da minha escola gostavam muito de nos ensinar. Diziam-me para pintar o quadrado de vermelho, eu gostava de pintar o triângulo de azul. Parece que só se podia pintar o que nos diziam, da cor que nos diziam.

Diziam-me que a minha árvore estava mal desenhada porque as árvores não eram assim como a minha. Era assim que eu gostava de desenhar árvores.

Diziam-me para escrever frases com umas palavras. Eu gostava de escrever frases com outras palavras.

Diziam-me para escrever um trabalho sobre um assunto. Eu gostava de escrever as histórias que inventava para contar aos meus amigos.

Diziam-me para ler aquele livro. Eu gostava de ler uns livros que descobria com o Professor Velho na biblioteca.

É verdade. Em quase todo o tempo da minha escola me disseram exactamente o que tinha de fazer, como tinha de fazer, o que tinha de saber, quando tinha de saber, o que tinha de pensar, como tinha de pensar, do que deveria gostar, ou seja, ser alguém, diziam-me. E assim fiz, sou alguém, dizem.

Ontem, vinha na rua e alguém dirigiu-se a mim, “O Senhor desculpe, importa-se de nos dizer o que pensa sobre …”.

Em pânico, interrompi a pessoa. Há tanto tempo que não penso.

Texto de Zé Morgado

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