É “livre” a família que é obrigada a mudar de residência para conseguir ter um médico ou uma escola para os seus filhos?
O debate em torno das funções do Estado na sociedade está há algum tempo inquinado e enviesado, pois uma facção aguerridamente militante optou de forma consciente por não querer ter em atenção qualquer argumentação contrária e por levar a sua agenda adiante, sejam quais forem as consequências, mesmo que se lhe sejam apontados erros de concepção, de metodologia ou se apresentem exemplos concretos do falhanço de experiências semelhantes. Foi assim que se passou a submeter uma lógica relacionada com a defesa do interesse público (noção que até pode ser menos fluida e relativa do que algum pretendem), que funcionava como referencial para o avanço do progresso em aspectos decisivos da vida social, económica e política, da maioria da população, a uma outra lógica, construída a partir de interesses de facção, destinada a servir esses mesmos interesses, alegadamente por obedecer a princípios mais eficazes de gestão financeira e defender uma alegada “liberdade” dos cidadãos para escolherem o que acham melhor para si.
Esta retórica demagógica baseia-se em pressupostos falsos, defende práticas de governação que desvirtuam qualquer noção de interesse público e, mais grave, limitam dramaticamente a liberdade de todos aqueles cidadãos que, num modelo competição e vitória dos mais fortes, se encontram numa situação de maior vulnerabilidade. O que antes era um ideal que polarizava a acção dos poderes públicos – do Estado, se preferirmos essa formulação – tornou-se, no discurso de uma facção que equivocamente se afirma como “liberal”, um alegado obstáculo ao progresso da sociedade. O principal argumento adiantado é que um papel interventivo do Estado na sociedade, no sentido de fazer progredir os direitos laborais e sociais dos cidadãos e de facultar serviços públicos, numa lógica de universalidade e livre acesso, é algo que não tem racionalidade económica. O princípio usado para dar legitimidade teórica a esta posição, é que essa intervenção do Estado limita a “liberdade de escolha” dos cidadãos.
As áreas da intervenção pública em que a investida se fez sentir com maior intensidade na última década foram a Saúde e a Educação, com ataques sucessivos à existência de um sistema de saúde e uma rede pública de ensino, de acesso gratuito e universal. Esses ataques visaram aqueles que ao longo dos últimos séculos foram os maiores pilares da acção do Estado em defesa dos direitos de cidadania das populações, assegurando-lhes o acesso a serviços (públicos) que de outra forma a lógica privada do lucro nunca lhes garantiria.
No caso da Educação, esta facção decidiu identificar a defesa de uma rede de ensino pública universal, alargada a todo o território, com a defesa de interesses “corporativos” dos professores como se esse sistema não tivesse surgido, desde o século XIX, exactamente como uma das formas mais eficazes do Estado “liberal” (e burguês) assegurar a inclusão das populações, na sua pluralidade regional, cultural ou social, numa lógica “nacional” de integração, coesão e solidariedade.
Nas sociedades liberais ocidentais, um sistema universal de ensino surgiu como imperativo necessário para a coesão social e nacional, tanto quando foi criado a partir das comunidades locais, como quando se disseminou a partir de iniciativa do poder político central. Em qualquer dos casos, a lógica foi sempre a da universalidade do acesso e da gratuitidade do serviço. As escolas “públicas” não nasceram por pressão “corporativa” dos professores mas como condição necessária para o progresso da sociedade no seu todo. Assim como os hospitais e centros de saúde públicos não são uma criação “corporativa” de enfermeiros e médicos.
Mas mais grave do que ignorar a origem e lógica da existência de um serviço público de qualidade na Educação é considerar que ele limita a “liberdade” dos cidadãos. Muito pelo contrário, só a sua existência permite essa mesma “liberdade”. Sem uma rede pública de escolas com uma lógica nacional e de coesão e coerência territorial, sem cedências a particularismos locais ou a interesses de grupos de pressão, com acesso gratuito e universal, não existe “liberdade” para todos aqueles que não têm meios para ir em busca, algures, de serviços privados que praticam a selectividade no acesso, seja através de mecanismos exclusivos do ponto de vista religioso ou cultural, seja através de patamares de exigência financeira.
Fechar escolas do 1º ciclo aos milhares pelo interior do país ou concentrar a gestão das escolas de todos os ciclos de escolaridade em cada vez menos unidade com projectos distintos, é um ataque objectivo à pluralidade de respostas da rede pública de ensino e uma limitação do acesso dos cidadãos a um serviço público de qualidade e proximidade.
Se este modelo é caro?
Tudo depende do que entendamos ser o interesse de todos nós, enquanto sociedade, por oposição aos interesses particulares de grupos que defendem a “liberdade” numa lógica de a perverter por completo, pois a torna acessível apenas a uma minoria de privilegiados. E depende ainda das prioridades estabelecidas para a aplicação dos dinheiros públicos.
Que “liberdade” existe para quem deixa de ter uma escola do 1º ciclo na sua freguesia e que, em muitos casos, precisa de deslocar os seus filhos dezenas de quilómetros para frequentar uma escola integrada numa “unidade orgânica” de gestão que apaga qualquer possibilidade de diferenciação pedagógica? Que “liberdade” existe num país que, em nome do combate ao centralismo, promove centralidades locais e regionais que potenciam o total despovoamento do seu interior rural?
É “livre” a família que é obrigada a mudar de residência para conseguir ter um médico ou uma escola para os seus filhos? É “livre” quem não tem alternativas e sabe que a lógica da “racionalidade financeira” leva ao agravamento das clivagens sociais e económicas?
Ser “livre” é ter condições para escolher, com informação adequada e alternativas para colocar em prática a liberdade.
Não é isso que se pretende ao eliminarem-se serviços públicos universais e gratuitos ou ao limitar-se dramaticamente a sua capacidade de responder às necessidades da maioria dos cidadãos.
Por: Paulo Guinote
Professor, autor do blogue A Educação do meu Umbigo
In: Público
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