Quando lemos ou ouvimos muitos dos especialistas mais ou menos instantâneos sobre Educação ficamos com a incómoda sensação de que um dos maiores males do nosso sistema educativo passa pelas posições corporativas dos professores, apresentadas com muita frequência como conservadoras, imobilistas e, desde que passou a valer todo o tipo de argumento, egoístas e defensoras apenas dos seus pretensos privilégios.
Esta é uma das facetas mais perversas da “narrativa” que foi sendo construída no presente milénio e que é transversal aos partidos que têm assumido a governação do país e que têm a responsabilidade pela condução das políticas educativas nos últimos 40 anos, com a activa conivência de amplos sectores da opinião publicada.
E é uma faceta perversa, antes de mais, porque trata os professores como uma massa de indivíduos alegadamente preocupados apenas com interesses particulares e despreocupados com a qualidade global da Educação, das escolas, do serviço prestado aos alunos e com a qualidade do seu desempenho, esquecendo- que esses professores são igualmente pais e mães de alunos e que estão tão ou mais preocupados com todos aqueles aspectos do que muitos dos que enunciam a preocupação, mas nem a vivem por dentro.
Como professor e encarregado de educação, as minhas preocupações e interesses são coincidentes e não divergentes. Mas não sou caso singular ou estranho. Como eu, existem muitos milhares de professores que querem o melhor para as escolas, seja em termos de meios como de procedimentos, porque querem o melhor para os seus alunos e os seus filhos. Porque a esmagadora maioria tem esses mesmos filhos a frequentar escolas públicas e o que querem para si, enquanto profissionais do sector, são as condições mais apropriadas para prestarem o melhor serviço aos seus alunos, que são filhos ou educandos de pais e encarregados de educação como o são os filhos dos próprios professores. Porque quando se faz uma oposição instrumental entre interesses de professores e “famílias” se dá a entender que aqueles são uma espécie de seres anómalos, sem família, que habitam as escolas e salas de aula durante o dia e durante a noite se deslocam para cavernas, onde afiam as suas garras cruéis, ou para antros de libação, onde delapidam os enormes proventos materiais obtidos mensalmente à custa dos contribuintes.
Claro que existe sempre um sector intransigente nos seus preconceitos que afirma que os professores conseguem tratamento de excepção para os seus educandos porque conhecem melhor o funcionamento do sistema educativo. Essa imputação, esse juízo de valor baseado em pouco mais do que impressões recolhidas em situações episódicas, vale tanto como qualquer generalização sobre qualquer outro grupo profissional. Só é mesmo pena que tais generalizações nunca surjam quando há boas notícias sobre a Educação, pois nesse caso os professores são sempre esquecidos.
Se há quem tenha uma percepção clara sobre o que é melhor para o funcionamento das escolas públicas, para a melhoria das aprendizagens dos alunos, para atingir um sucesso efectivo no desempenho dos alunos para além da propaganda, para além dos calendários eleitorais, para além das agendas político-ideológicas e para além dos interesses comerciais de algumas clientelas, são os professores. E afirmo-o sem problemas de ser qualificado de corporativo ou pior, pois já observei de perto vários ambientes e, apesar de muito fustigados, ainda são os professores que defendem de forma mais sincera a qualidade das escolas, a necessidade de um ambiente que propicie a qualidade das aprendizagens e do bem-estar dos alunos. Não apenas porque os seus filhos também são alunos, mas também por isso.
Se há algo que não esqueço é que, tal como quero o melhor para a milha filha enquanto aluna, também todos os encarregados de educação dos meus alunos o devem querer e é meu dever prestar-lhes esse serviço. Eu sou professor, cá em casa até somo dois, mas também somos “família”, também queremos das escolas públicas o melhor possível e a luta (na maior parte dos casos infrutífera e inglória) que vamos travando diariamente contra a degradação das nossas condições de trabalho, contra o aumento da dimensão das turmas, contra o encaixotamento dos alunos em escolas cada vez maiores desde a idade mais tenra, contra o fim da autonomia das escolas e o rapto das suas competências de decisão, é uma luta pelo que também achamos melhor para a nossa filha enquanto aluna.
E a mim repugna-me muito quando ouço ou leio certas figuras falar em nome “das famílias” contra os professores, como se estes fossem uma espécie menor de gente, sem filhos a frequentar as escolas, gente egoísta e interessada apenas em embolsar régios salários mensais em troca de nada.
Após mais de 40 anos no sistema público de ensino e em alguns momentos na qualidade dupla ou mesmo tripla de aluno, professor e/ou encarregado de educação, acabei por constatar que muitos dos que proclamam o seu amor pela Educação e se apresentam como tendo as fórmulas mágicas para elevar a sua qualidade raramente o fazem de forma desinteressada e filantrópica.
Como professor e encarregado de educação estou bastante farto de uma “cartografia de interesses” que se instalou no território da Educação, ao constatar-se que é uma das mais apetecidas parcelas do Orçamento de Estado. E estou farto de decisores políticos que aparecem em trânsito, em especial a caminho de posições que beneficiam com clareza do exercício dos cargos que detiveram. Ou que depois se instalam no mundo académico a patrocinar estudos que legitimam, a posteriori, as suas políticas. E nem vos digo como estou farto de especialistas e investigadores de pacotilha com “estudos” feitos por encomenda ou “opiniões” fundamentadas em seis meses que deram (e mal) aulas numa qualquer escola à laia de biscate e depois generalizam a sua falta de profissionalismo aos outros.
Enquanto professor e encarregado de educação o meu interesse é duplo na melhoria da qualidade do serviço prestado aos alunos, na humanização dos espaços escolares, na existência de procedimentos de proximidade destinados a responder de forma eficaz às necessidades concretas dos alunos, na existência de uma rede escolar que não seja um factor de aumento das desigualdades e assimetrias existentes no meu país.
Enquanto professor e encarregado de educação os meus interesses são, repito-o, coincidentes e não aceito facilmente que quem está do lado de fora se apresente como tendo uma posição mais virtuosa ou sincera nos seus propósitos do que a minha, só porque cometi o pecado de ser professor.
Por: Paulo Guinote
In: Público
Sem comentários:
Enviar um comentário