Ontem, um pediatra alertou para o facto de a ruptura de stock de um medicamento para a atenção poder empurrar crianças para o insucesso escolar e a reprovação. Vendas sugerem que há cada vez mais crianças e jovens medicados
Quando B. chegou ao primeiro ciclo andava a correr à volta das carteiras na sala de aula. Hoje tem 12 anos e toma medicação para a concentração há dois. Marina, com sete filhos, vê o fenómeno por dois ângulos: é mãe e educadora de infância. Os dois rapazes mais velhos passaram por avaliações de neuropediatras, nenhuma aconselhando de forma taxativa os medicamentos. Mas os médicos deixaram-na à vontade e B. e T., com 10 anos, começaram a fazer a medicação: o mais velho para o desafio constante da autoridade e a impulsividade; o mais novo para superar as dificuldades provocadas pela dislexia e fazer render melhor o tempo na escola. “Sinto que seria diferente se tivessem tido uma educação pré-escolar mais estruturada, com objectivos e aprendizagens orientadas para a concentração e a memória. Ficam com ferramentas muito melhores para lidar depois com a guerra da escola e os novos desafios”, diz.
Depois de 12 anos numa IPSS, está agora num colégio onde as crianças, aos três anos, já fazem exercícios de leitura e matemática informais e têm um programa para treinar a concentração e a organização. “Tem muito a ver com os estímulos, e medir resultados. Não tem de ser aprender a ler, pode ser aprender marcas de carros. Não digo que a escola deva substituir os pais, mas quem é que hoje tem tempo para chegar a casa e brincar com eles aos legos ou aos jogos de tabuleiro?”
Embora não seja fácil ter uma percepção do número de crianças e jovens medicados em Portugal para problemas do foro do défice de atenção e hiperactividade, as vendas dos três medicamentos estimulantes do sistema nervoso usados nestes distúrbios mostram uma tendência de consumo crescente. Segundo dados da consultora IMS-Health cedidos ao i para as transacções entre armazenistas e farmácias, entre 2007 e 2011 o número de unidades vendidas de Concerta, Rubifen e Ritalina (princípio activo metilfenidato) aumentou 78% para 196 749 embalagens no ano passado. Nos primeiros três meses deste ano foram vendidas cerca de 65 mil unidades destes medicamentos, um aumento ligeiro em relação ao primeiro trimestre de 2011 (61 200).
Embora o fenómeno da “geração ritalina” seja um tópico de discussão comum nos últimos anos, os dados não permitem uma leitura inequívoca. Ontem o tema voltou a estar em cima da mesa depois do alerta do pediatra do desenvolvimento Miguel Palha a propósito da ruptura do stock de um destes medicamentos (o Rubifen) nas farmácias. À Lusa, o especialista diz que, porque a substituição de medicamentos nem sempre é viável e porque as alternativas são mais caras, a ausência de um medicamento está a levar pais e pediatras ao desespero: “As crianças querem estudar e não conseguem. Sem estudo e concentração não conseguem boas notas. Estão a ser empurradas para o insucesso e até para a reprovação”, disse.
DOIS MOVIMENTOS Se para o pediatra Mário Cordeiro o apelo é algo exagerado, por fazer depender o sucesso estritamente da medicação, a psicóloga Maria João Ferro acredita que há dois movimentos que podem explicar tanto o apelo de Miguel Palha como o aumento das vendas de metilfenidato e algum exagero na prescrição: “Acho que temos mais informação e as crianças que, de facto, estão bem diagnosticadas e a fazer medicação podem não progredir se o tratamento for interrompido. Por outro lado, há casos subvalorizados. A minha dúvida é se em Portugal se faz a escada toda de avaliação até à medicação.” Da mesma opinião é Linda Serrão, presidente da Associação Portuguesa de Crianças Hiperactivas. Embora acredite que o aumento das vendas não reflicta necessariamente os diagnósticos, sublinha que continuam a existir crianças bem e mal avaliadas. “Há profissionais a fazer diagnósticos aos três anos, há crianças a tomar medicação que não precisam, mas também famílias que precisavam de dar medicação aos filhos e não conseguem, por ser cara.”
Maria João Ferro admite que têm aumentado os pedidos de avaliação, tanto de médicos como por iniciativa dos pais. E alerta que, embora haja abordagens comportamentais importantes, há casos em que a medicação é a solução. “Estamos a falar de uma perturbação neurobiológica, com vários gradientes. Se tivermos um bom centro de desenvolvimento, tenho poucas dúvidas de que as coisas sejam mal feitas. Mas pode haver outros profissionais que os medicam por tudo e por nada.” De qualquer forma, sublinha, o aumento das crianças e jovens medicados não é um problema exclusivo do país. “Há investigações que apontam para a hereditariedade, há outras que apontam para que a falta de exercício e intelectualização da sociedade possam aumentar a agitabilidade, mas neste momento não temos uma causa para o défice de atenção e a hiperactividade. Mas são dois problemas que convém não misturar: os casos bem diagnosticados, com alterações neurobiológicas, e os meninos que se metem neste saco.”
Realidades que se misturam na prática. Para Marina, a frustração e os maus resultados dos dois filhos na escola acabam por pesar mais do que um diagnóstico fechado, com apoio dos médicos. Mas assume que é muito um problema de maturidade e de degradação das relações e dos hábitos das crianças, porque o estilo de vida mudou. Na hora da verdade, o comprimido acaba por ser mais fácil e dar mais segurança a pais e crianças.
In: I online
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