A educação é um bem social primário e uma condição essencial de justiça. E as condições essenciais de justiça não se podem jogar no mercado, por definição sobredeterminado pelo lucro.
A crescente intensidade do debate acerca da escola pública e do projeto do governo PSD/CDS, visando a sua mercantilização, tem toda a razão de ser. Mais ainda que a Saúde, a Educação está no centro das políticas públicas de justiça social.
Se é absolutamente certo que as políticas públicas de saúde são centrais na igualdade de acesso, cuidado e fruição da vida biológica (com as repercussões que isso tem nas condições de vida e dignidade pessoal), e sem escamotear a dimensão social deste elemento básico de dignidade, é no acesso à educação e à cultura que se joga não só o essencial da identidade, autoimagem e emancipação pessoais, mas as possibilidades de ascensão e equilíbrio social entre pessoas, grupos e classes. No limite, um excelente Serviço Nacional de Saúde poderia servir para qualificar as condições de saúde individuais e das famílias para a reprodução da desigualdade. Pelo contrário, um serviço nacional de educação, um sistema de educação pública, age não só sobre a infraestrutura biológica dos indivíduos e das famílias, mas sobretudo sobre as condições sociais e individuais de uma sociedade justa. Isto quer dizer, simplesmente, que é num serviço de educação pública que se joga a democracia de um país.
Uma sociedade justa e decente estabelece como condição necessária a criação e manutenção de um sistema de educação capaz de respeitar os interesses e dignidade dos indivíduos, num contexto de equilíbrio e justiça social. Uma sociedade em que o único interesse fosse o da livre competição física, económica ou meritocrática não seria uma sociedade porque seria incapaz de estabelecer horizontes de dignidade e valor comuns, reduzindo tudo ao sucesso e insucesso individuais, i.e., ao mais extremo subjetivismo/relativismo ético, a forma ética do neoliberalismo. Acontece que o sucesso individual de per si, resultado da força física, do mérito individual, das condições económicas de partida ou da sorte não se podem constituir como condições de justiça civilizacionalmente aceitáveis. Nenhum resultado social é justo se resulta da sorte. Ninguém merece que lhe saia o Euromilhões. Também nenhum resultado é justo se resulta de melhores condições de partida do vencedor. E também é fácil esclarecer o erro segundo o qual o mérito e o esforço legitimam o vencedor e as diferenças sociais que daí decorrem (desconto o perigoso absurdo de que um racismo genético legitima as diferenças, que é o mesmo que dizer que a acaso legítima a justiça). A capacidade de concentração, a resiliência e a capacidade de diferir as recompensas (tão importantes nas estratégias de sucesso social) não são, na sua expressão social, resultado de qualquer ingrediente místico, mas simplesmente condições socioeducacionais de base. Uma criança bem treinada naquelas competências alcançá-la-ás. Ora, ninguém escolhe a família, ou o país, em que quer nascer. Nascer aqui ou ali é um caso de sorte pura e, por isso, ninguém tem especial mérito pelos resultados que alcança a partir dessa origem. A questão a responder é, então: como equilibrar as evidentes diferenças de origem, de sorte ou, até, de capacidades naturais, em busca de uma ideia e uma prática de justiça que não ceda à falácia naturalista segundo a qual as coisas são justas se são como são?
Não há como ignorar, aqui, o justamente conhecido Princípio da Diferença, de John Rawls: “Todos os valores sociais – liberdade e oportunidade, rendimento e riqueza, e as bases sociais do respeito próprio – devem ser distribuídos igualmente, salvo se uma distribuição desigual desses valores, ou de todos eles, redundem em benefício de todos”. O que o Princípio da Diferença nos diz é que a diferença de rendimentos, e de oportunidades, só é justa se servir para ajudar todos, particularmente os que mais necessitam, já que, precisamente, a sua obtenção nunca é, a priori, justa, mas resultado das contingências naturais ou sociais.
O que isto tem a ver com a escola pública é que esta foi o instrumento que nas sociedades contemporâneas se encontrou para minimizar o peso das contingências naturais e sociais na determinação da desigualdade social. A escola pública dá (tenta dar) a todos as mesmas possibilidades de partida e, nos melhores casos, as mesmas condições de chegada, sem o que a igualdade de partida pode constituir, tão-somente, um outro expediente de legitimação da desigualdade. Sem retirar aos que têm mais talentos naturais ou condições socioculturais mais elevadas as suas condições de base, a escola pública aposta numa miscigenação social e num apoio educativo e social diferenciados, partindo do princípio de que essa mistura é boa para os mais e para os menos qualificados, no sentido em que as melhores condições de uns servem de catalisador de contexto para os que têm condições menos boas, favorecendo os resultados globais e dando justificação ética às diferenças sociais e aos resultados. Sem este espaço de justiça e deixado o resultado às leis do mercado, isto é, à competição das escolas pelos melhores alunos, excluindo os piores, o resultado será sempre injusto.
Percebe-se, então, que uma ideia de justiça racional e eticamente sustentada rejeite a ideia e a prática de mercantilização do ensino. Desde logo porque condições básicas de justiça, como a educação, não podem depender de sistemas, como o económico, por definição amorais, no sentido em que carregam consigo a possibilidade de sucesso ou insucesso humano, decidido de modo completamente exterior à determinação da vontade individual ou democrática. Alguns dirão que o mercado educacional, por essa mesma condição de amoralidade e pela relevância do “produto”, terá que ser mais regulado que os outros mercados e que essa será a sua salvaguarda. Mas estas intenções têm tanto de ingénuo como de perigosamente mentirosas. As provas de que as coisas são assim estão aí, todos os dias, à vista dos que as queiram ver. A regulação do mercado educacional nunca impediu e nunca impedirá a transformação dos jovens e das crianças em instrumentos tendo como fins o lucro e a segregação social.
A educação é um bem social primário e uma condição essencial de justiça. E as condições essenciais de justiça não se podem jogar no mercado, por definição sobredeterminado pelo lucro, funcionando como uma instância naturalista a que o sentido do humano é alheio. Por isso é que uma educação, um pensamento e uma ação progressistas, tradicionalmente identificadas com a esquerda política, têm de rejeitar a instauração de um mercado educativo, de que o "cheque ensino" é uma das formas, já que assim se instaura a “justiça” como uma função do mercado e daquela que é a sua forma mais essencial, a competição, em que uns perdem e outros ganham, em que uns se salvam e outros estão condenados à pobreza eterna.
PS. A ideia segundo a qual professores com mais de cinco, dez ou 15 anos de serviço, reconhecidamente bom e excelente serviço, devem fazer umas “provetas” de “conhecimentos e capacidades”, de cruzinhas e com uma redação de trezentas linhas, para que possam continuar a candidatar-se ao exercício das suas profissões, é daquelas ideias tão absolutamente estúpidas que o seu autor deveria cair redondo de vergonha. Mas em Portugal não. Em Portugal uma ideia estúpida parece ser vezes de mais o melhor caminho para a ideia estúpida seguinte.
Francisco Teixeira
Professor do ensino secundário, doutorado em Filosofia e especializado em Organizações Educativas e Administração Educacional
In: Público
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