segunda-feira, 4 de maio de 2015

Reinventar a Escola é também reinventar o currículo, reconstruí-lo e vivê-lo

Domingos Fernandes é Professor Associado com agregação da Faculdade de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa, desde 2007. Antes disso, leccionou nos ensinos Básico e Secundário (1975-86), na Escola Superior de Educação de Viana do Castelo (1986-91) e na Universidade de Aveiro (1991-2002). Licenciado em Matemática e com investigação diversa na área da Educação (avaliação, desenvolvimento curricular), fez mestrado em Boston e doutoramento na Universidade do Texas (Filosofia da Educação). A par da carreira docente desempenhou funções executivas na Administração Educativa: foi Secretário de Estado (2001-02), Director-Geral do Ensino Secundário (1996-2001) e vice-presidente do Instituto de Inovação Educacional (1993-94). Colaborador da PÁGINA desde 2005, Domingos Fernandes foi distinguido com o Prémio Sebastião e Silva pelo melhor manual de Matemática para o Ensino Básico (2004).

Sendo um homem da Matemática, como o actual ministro da Educação, e tendo já integrado uma equipa governativa, como é que o Domingos Fernandes avalia os primeiros tempos de Nuno Crato no Ministério da Educação?

Bom, julgo que aquilo que eu posso dizer é muito semelhante ao que diz a esmagadora maioria das pessoas que estão atentas aos desenvolvimentos políticos da Educação e que se resume ao facto de o pensamento do actual ministro ser bem conhecido. Talvez nunca tenhamos tido, anteriormente, um ministro cujo pensamento fosse tão bem conhecido. É uma pessoa que ao longo dos últimos anos – de forma bastante assertiva, e até contundente, nalgumas situações – manifestou o seu pensamento e as ideias que tem para o desenvolvimento da Educação. E, portanto, a única coisa que posso dizer neste momento é que aguardo a concretização desse pensamento, para ver como é que o novo ministro vai pôr em prática aquilo que foram as suas asserções ao longo dos últimos anos.

Ainda está a apalpar o terreno?

Eu acho que deve estar a arquitectar a melhor forma de pôr as ideias em prática. Provavelmente ainda não teve muito tempo. Mas toda a gente sabe aquilo que o actual ministro pensa sobre o desenvolvimento da Educação em Portugal.

Assumir um cargo governamental e em pouco mais de um mês pôr a estrutura a funcionar de acordo com o que se pretende, não deve ser tarefa fácil…

Repare, uma coisa é ser político na oposição, como era o caso do actual responsável pela pasta da Educação, em que é – e perdoe-se-me esta facilidade com que o vou dizer – relativamente fácil criticar, dizer que se vai fazer isto ou aquilo. Uma outra coisa é ser responsável por governar o país, estar integrado numa equipa de governação. Isso faz alguma diferença, porque não se trata apenas de comentar medidas, de dizer, enfim, coisas que às vezes se dizem com relativa facilidade. Trata-se, antes, de ter um sistema com quase dois milhões de alunos (excluindo os do Superior) e 160 mil professores a funcionar de forma a poder responder aos legítimos anseios da sociedade portuguesa em relação ao sistema educativo.

Na sua opinião, o ministro tem perfil político ou é, sobretudo, um divulgador científico com projecção mediática?

Pelo que eu conheço da intervenção pública do professor Nuno Crato, acho que ele teve uma intervenção marcadamente política. Mesmo enquanto presidente da Sociedade Portuguesa da Matemática, as suas intervenções sempre tiveram um cunho político bastante marcado e que se integra, digamos, numa agenda política clara, de natureza internacional, regida pelo mesmo tipo de pensamento. Agora, não retiro daqui a conclusão de que ele é exclusivamente um político – fez uma carreira académica com sucesso, foi divulgador científico e tem méritos a esse nível.

Acha que ele tem margem de manobra, nomeadamente face ao que está acordado com a troika? Poderá fazer alguma coisa de significativo, tendo um ditame tão apertado como se diz que este é?

Eu acho que nas sociedades democráticas – e sempre pensei isso, quando passei pela experiência que passei – o chamado “corredor do poder” não é, muitas vezes, tão largo como as pessoas possam pensar. E isso tem a ver precisamente com a natureza democrática das sociedades: temos de negociar, de procurar constantemente articular perspectivas diferentes, de procurar o maior denominador comum entre as ideias. Portanto, dá trabalho e, ao mesmo tempo, não se pode lá chegar e fazer tudo o que apetece; temos de concertar posições, que pensar em conjunto e procurar encontrar a melhor forma de alcançar grandes metas para o sistema educativo.

Eu penso – e sei que este pensamento não é propriamente o mais comum – que este é um momento de grande oportunidade para o sistema educativo português. Mas, naturalmente, é um momento de oportunidade se nós tivermos um pensamento sobre a Escola, um pensamento sobre a Educação, um pensamento sobre o sistema educativo e como é que o podemos e devemos desenvolver, identificando clara e inequivocamente as áreas, os domínios, em que é fundamental investir nos próximos anos. Penso que não será a troika, ou outra estrutura supra-nacional qualquer, que nos pode impedir de desenvolver determinadas políticas. É evidente que não ignoro que há constrangimentos financeiros, que todos conhecemos e que podem não nos permitir desenvolver as coisas de uma determinada maneira. Por isso, temos de ser inteligentes e criativos, e ter as pessoas mobilizadas. Eu até diria mais, temos de ter a sociedade mobilizada para as questões da Educação e da Formação. Repare: nós já tivemos tempos de “vacas gordas”, passe a expressão, em que a necessidade de mobilização da sociedade para essas questões se punha com a mesma acuidade que se põe agora, mas infelizmente não temos tido essa mobilização.

Tivemos “a paixão pela Educação”, que deu em slogan da governação de António Guterres e teve algum efeito – pelo menos, chamou a atenção do país para o sector. Entretanto, parece que a “paixão” esmoreceu e o efeito foi-se desvanecendo quase até ao “ódio”…

É precisamente o que eu estou a dizer-lhe. Penso que nessa altura, em meados da década de 90, houve realmente algumas bandeiras importantes que se colocaram: uma delas foi a batalha pelo Pré-Escolar; outra foi a universalização do Ensino Básico; e talvez uma outra, que me parece importante, que foi a criação de uma carreira única para todos os professores e educadores. Embora possa ser controversa para alguns, para mim é perfeitamente pacífica. Penso que é um marco muito importante na vida educativa portuguesa – os educadores e os professores do 1º Ciclo, eternamente marginalizados, sempre muito pouco considerados no panorama educativo nacional, verem as suas carreiras ter os mesmos mecanismos de progressão que as dos professores dos 2º e 3º ciclos e do Secundário. Depois, disse o António, houve um certo esmorecimento…

Provavelmente, nós também o sentimos! É o que eu digo, temos dificuldade de mobilizar a sociedade portuguesa para as questões da Educação e da Formação…

Ou mobilizámos de mais, toda a gente se apropriou do discurso educativo e outros interesses se manifestaram e conflituam? Agora, tudo quanto é Educação parece muito escrutinado, nomeadamente pelos opinion makers.

Não. Eu falo pela minha experiência, e julgo que não fomos suficientemente longe no estabelecimento de articulações, de pontes, com outras fontes políticas. E penso que isso é fundamental, haja maioria absoluta ou não. Eu estive numa altura em que não havia e, portanto, mais razões haveria para procurar essas pontes. Aliás, penso que um dos problemas – um dos obstáculos ao desenvolvimento da Educação em Portugal – é precisamente o facto de ela continuar a ser um palco relativamente fácil de confrontação política. E temos exemplos muito recentes que mostram isso claramente, que a Educação é um campo de confrontação, ou de arremesso, de certas medidas políticas que não reúnem o consenso que seria desejável. Porque, do meu ponto de vista, Portugal tem enormes potencialidades para ser um país ao melhor nível europeu, não tenho dúvidas. Mas isso tem que passar por um investimento na Educação e na Formação, que tem vindo a ser feito, e por um consenso em torno de determinadas matérias, que ainda não foi possível alcançar nestes anos todos de democracia.

Nem na Lei de Bases do Sistema Educativo…

A Lei de Bases, apesar de tudo, mereceu um consenso; se não foi unânime, foi quase.

A propósito de confrontação política, que leitura que faz das actuais posições dos partidos da maioria parlamentar e do Governo, designadamente face às propostas que apresentaram no final da legislatura anterior?

Pois… Sabe que, em relação a um conjunto de matérias, e quando estamos do lado de uma Educação democrática, isto é, com preocupações sociais, de coesão social, de inclusão, e não da exclusão precoce dos alunos; quando estamos preocupados com isso, com essa agenda, não temos – se me é permitida a expressão – muitas voltas a dar… Podemos fazer uma espécie de cosmética, mas, no essencial, as coisas são basicamente as mesmas, aqui, na Suécia, na Finlândia, enfim, nos países que se integram na União Europeia. Portanto, por vezes, a luta política atinge foros de uma tal demagogia que, depois, é preciso um verdadeiro malabarismo político para conseguir justificar determinado tipo de medidas que se tomam.

Há um pouco a ideia de que cada novo ministro da Educação quer fazer uma ruptura com alguma coisa, deixar a sua marca. Consegue perspectivar qual será “o objectivo” de Nuno Crato?

Com toda a franqueza, a única coisa que posso dizer é que o responsável pela Educação deve ter uma agenda clara e inequívoca relativamente ao desenvolvimento da Educação e da Formação. E essa

Como assim?

O António repare que temos figuras públicas – ou não públicas, ou feitas públicas – que escrevem dois ou três artigos para um jornal, aparecem duas ou três vezes na televisão, publicam uma brochura e passam imediatamente à categoria de especialistas em Educação! E depois vemos afirmações dessas pessoas na comunicação social, sem qualquer fundamento, qualquer base científica. Aliás, verifica-se algo interessante: mesmo pessoas do mundo da Ciência, quando se pronunciam sobre questões que têm a ver com a Educação, despem a farda de cientista e vestem a farda das ideologias e das concepções que têm sobre o sistema educativo. Frequentemente (eu acho que é invariavelmente), quando essas pessoas se pronunciam sobre a Educação, a sua atitude científica fica completamente esquecida e o que vale é a sua ideia de sociedade, a sua crença; o que vale é a sua concepção e a sua opinião sobre como é que deve ser o ensino da Matemática, ou da Física…

O que eu quero dizer é que, muitas vezes, as pessoas responsáveis pelos ministérios da Educação, e que vêm de áreas cientificas, passam rapidamente para uma atitude e para uma posição que é muito mais baseada nas suas crenças – frequentemente pouco racionais – do que no conhecimento científico produzido, que existe. Porque existe um domínio do conhecimento da Educação e da Formação que envolve milhares e milhares de pessoas em todo o mundo; há dezenas ou centenas de revistas que publicam milhares de artigos todos os dias; há investigação feita… E muitas dessas pessoas que normalmente se pronunciam desconhecem isso completamente.

Portanto, há todo um saber que não é mobilizado…

Esse saber não é mobilizado, muitas vezes não é tido em conta… E eu julgo que há aqui uma questão bastante importante. Por um lado, a dificuldade dos académicos e das pessoas que produzem conhecimento na área da Educação e da Formação em aceitarem as decisões e as medidas de política que são tomadas pelo poder – têm uma grande dificuldade, às vezes, até um excessivo preconceito relativamente a isso, porque não consideram que essas pessoas têm direito a essa intervenção, ou ignoram à partida quaisquer virtualidades que essa intervenção possa ter. Por outro lado, o problema ao contrário, isto é, os responsáveis políticos têm muita dificuldade em integrar no seu pensamento, nas suas acções, o conhecimento produzido, que normalmente é derivado de alguma crítica em relação ao que se passa na realidade. agenda tem que ser ancorada num conjunto de visões, de ideias – de ideias, mesmo – sobre a Escola que queremos.

Que Escola temos e que Escola queremos? Que formação de professores temos e que formação queremos? Que sistema de colocação de professores temos? Está a servir, ou não, para desenvolver as escolas? Que autonomia de escolas é que temos?... Portanto, um conjunto de aspectos sobre os quais já existe alguma maturidade – adquirida ao longo dos anos, apesar da controvérsia e até, às vezes, de uma certa confrontação – e as pessoas estão preparadas para aderir a um debate aberto, sem preconceitos, que realmente faz falta. Porque eu penso que o grande problema que temos tido nestes anos de democracia é a falta de ideias sobre a Educação. Quer dizer, eu acho que se estuda muito pouco e se reflecte muito pouco sobre as questões da Educação. Como diz um colega, parece que quanto menos se estuda e menos se investiga, mais afirmações se fazem e mais certezas se afirmam. E isto também tem a ver com os níveis de cultura educativa que temos em Portugal.

O panorama da formação de professores é francamente débil

Uma das primeiras medidas da equipa de Nuno Crato foi a publicação da reorganização curricular do Ensino Básico. O que é que se pode esperar desta reorganização?

É difícil pensar nas consequências de medidas, a meu ver, esparsas e pouco integradas. Supostamente visam introduzir algumas correcções, mas não se inserem num quadro abrangente do que podemos considerar a melhoria do Ensino Básico. Nós temos que ter uma ideia sobre o que é o fundamental da Educação em Portugal. Se nos anos ’90 tivemos a massificação do Ensino Básico e uma aposta importante no Pré-Escolar, nestes tempos mais chegados tivemos medidas várias, que foram ao encontro de melhoria do Ensino Básico, que também incidiram muito na diversificação do Secundário e que culminaram, digamos assim, com o alargamento da escolaridade obrigatória. Isto tem implicações profundíssimas no sistema educativo. E significa que temos de ter um pensamento sobre o que queremos da Educação de 12 anos de escolaridade, ou até aos 18 anos. O que é que, enquanto sociedade, consideramos que os jovens devem desenvolver ao nível da sua educação cívica (e não digo educação cívica por acaso, porque o currículo não pode ser só Matemática e Língua Portuguesa), das ciências naturais, das ciências sociais, das competências…

A sociedade portuguesa tem que se entender relativamente ao que significam 12 anos de escolaridade obrigatória e às medidas que devem ser tomadas de acordo com uma ideia de Educação fundamental para todos os jovens. E aí, o Ensino Básico tem que ser tratado de uma maneira muito cuidadosa e muito intensa.

Por alguma razão especial?

Porque nós temos um 1º Ciclo e um 2º Ciclo (e mesmo o 3º) que estão aquém daquilo que os professores são capazes de fazer e do que as escolas são capazes de proporcionar. E isso prende-se com variadíssimos problemas, que têm a ver com a organização escolar, dos tempos e dos espaços, mas também com uma pouca concentração naquilo que ocorre dentro das salas de aula. Falando como investigador: num conjunto de turmas em que os professores são relativamente bem acompanhados e que têm oportunidade de discutir uns com os outros, de falar com pessoas de outras escolas e de instituições de Ensino Superior, em que se consegue formar uma rede de comunicação e de transferência de conhecimento, o que nós verificamos é que esses professores conseguem que os seus alunos desenvolvam as aprendizagens de uma forma muito positiva. O que eu quero dizer é que, eventualmente, não temos feito o investimento necessário no desenvolvimento das aprendizagens dos alunos. E isso faz-se primordialmente dentro da sala de aula. Não quer dizer que os alunos não aprendam fora das salas de aula, porque eles aprendem em vários sítios, mas as aprendizagens escolares, o chamado “conhecimento poderoso” (na expressão de Michael Young), esse é um conhecimento escolar, que é universal, e nós temos investido relativamente pouco a esse nível; se calhar, investimos mais em avaliações externas, por exemplo, do que na melhoria das aprendizagens. Esta é, seguramente, uma bandeira fundamental para o desenvolvimento do sistema educativo – centrar as preocupações naquilo que os alunos aprendem, como aprendem e para que aprendem. E aí, a nível do Ensino Básico, eu acho que temos realmente um problema.

E como se resolve o problema?

Resolve-se com medidas de política orientadas para o acompanhamento dos professores, para a sua formação em contexto. Esta coisa da formação dita contínua, a ouvir um especialista durante seis ou sete horas, não tem qualquer efeito. Nós temos documentadas experiências recentes que mostram que, quando trabalham a partir dos programas curriculares e de tarefas seleccionadas com critério, quando trabalham em cooperação e têm oportunidade de discutir o que correu bem e menos bem com determinada tarefa, os professores sentem-se muito mais à vontade para desenvolver o currículo e os alunos aprendem muito mais. E há coisas relativamente simples, que não exigem investimentos especiais, como por exemplo: as aulas terem uma certa estruturação em vários momentos em que os papéis dos professores e dos alunos estão perfeitamente claros; haver tarefas seleccionadas com critério; haver diferentes dinâmicas de sala de aula… Portanto, eu julgo que a aposta no desenvolvimento das aprendizagens e em projectos como os planos de acção para a Matemática, para o Português e para as Ciências Naturais, é fundamental.

Olhando para a Matemática: por um lado, a comparação de resultados a nível internacional (PISA) parece indicar que os alunos portugueses estão a melhorar os seus desempenhos; por outro lado, temos os exames nacionais que, pelos vistos, são uma tragédia… Entretanto, a reorganização curricular do Ensino Básico extingue áreas e aumenta a carga horária da Matemática… Afinal, o problema é de quantidade ou de qualidade?

Ninguém pode dizer qual é o tempo ideal para que os alunos aprendam bem a Matemática. A ideia é que precisamos de um tempo razoável para desenvolver o currículo – o que está mais ou menos padronizado em termos internacionais – e, por exemplo, ao nível do Secundário, parece que a situação estabilizou. Tanto quanto posso perceber, a partir do momento em que, há anos, se propôs um acréscimo de 70 minutos na carga horária, as coisas melhoraram substancialmente em termos de reclamações sobre a questão do tempo.

E no Ensino Básico?

Eu penso que há uns anos houve uma redução da carga horária e que tem de ser feito um ajustamento – que é razoável e que existe em todos os países. Mas é evidente que a sua pergunta faz todo o sentido. A questão fundamental está na gestão e desenvolvimento do currículo. E o cerne do problema é percebermos que não é tudo igualmente importante, que há coisas muito mais importantes do que outras no desenvolvimento do currículo, coisas que, por exemplo, são desenvolvidas no 7º ano, vão voltar a ser abordadas no 8º e, eventualmente, no 9º… E não há problema rigorosamente nenhum! Isto remete-nos para o problema de termos uma visão de ciclo, em vez de uma visão quase de ano, ou até de trimestre. Nós temos que ter (imagine no 3º Ciclo, do 7º ao 9º ano) uma visão de quais são os conceitos e as ideias fundamentais que temos de desenvolver com os alunos. Antes de mais nada, para aquilo que é absolutamente fundamental, e depois, naturalmente, gerir isso dentro do tempo que temos. E aqui vamos para uma questão absolutamente crucial e que não é muito discutida, que é a selecção das tarefas que são apresentadas aos alunos para eles aprenderem. Portanto, pegando nas suas palavras, eu julgo que a questão não é da quantidade, de facto, mas da qualidade de gestão e desenvolvimento do currículo. Com isto, não estou a dizer que qualquer tempo serve; é preciso um tempo razoável, mas essa questão está mais ou menos estabilizada.

Voltando ao Ensino Secundário, o Domingos Fernandes considera que há três desafios que se colocam ao seu desenvolvimento: a inserção dos cursos profissionais nas escolas secundárias, a mobilização de recursos no apoio aos alunos e a revisão da formação inicial dos professores.

Nos últimos anos, digamos entre 2005-2010, o panorama alterou-se positivamente: pela primeira vez, houve coragem política de assumir claramente que o Secundário tinha que ter cursos profissionais. Eles tinham sido lançados num governo anterior, de forma algo tímida, mas foi a partir de 2005 que, realmente, houve uma aposta inequívoca na oferta de cursos profissionais por parte das escolas secundárias – para o que, do meu ponto de vista, o Programa Novas Oportunidades também se revelou importante. E isto alterou, ou pelo menos pretendeu alterar, a matriz do Secundário, que deixa de ser um mero corredor de passagem para o Ensino Superior. Ou seja, o Secundário funciona, e deverá funcionar cada vez mais, como uma plataforma de diferentes percursos e processos que permitam a cada jovem concretizar o seu projecto de vida. E esse projecto tem que ser um projecto da escola, em que a própria comunidade está envolvida e em que os alunos são mobilizados para, a partir do 3º Ciclo, começarem a pensar no mundo que os rodeia, nas profissões, nas suas motivações, nos seus anseios, nas coisas que gostariam de fazer… E o Secundário deve dar abertura a isso; isto é, não pode levar os alunos a becos sem saída, tem que ser uma plataforma de oportunidades. Nesse sentido, temos duríssimas batalhas sociais a desenvolver, e uma delas é deixar de considerar determinadas ofertas, sobretudo da área profissionalmente qualificante, como escolhas de segunda categoria. O que tem um efeito de tal ordem que, em muitas escolas, são os próprios professores – que deveriam lutar para que essas formações fossem de qualidade – a considerar que aquilo é uma coisa menos valorizada.

E não é? Muitas vezes, a atribuição dessas turmas não é um “castigo” aplicado aos professores?

Pois… Exactamente. As pessoas não valorizam e, a partir do momento que não valorizam, pode ser considerado um castigo. Agora, nós não nos podemos esquecer dos princípios, e o princípio é que o Secundário não pode ser apenas uma espécie de correia de transmissão para o Ensino Superior, que durante anos determinou o currículo do Secundário. Hoje já não é exactamente assim, e as universidades e politécnicos vão buscar, como eles dizem, novos públicos – alunos que tiveram percursos menos canónicos, e que eles vão buscar através dos cursos de especialização tecnológica, onde os alunos fazem formações creditadas que lhes permitem ingressar nalgum curso do Ensino Superior. Portanto, as coisas estão a mudar ligeiramente. O Ensino Superior também já tem outra visão sobre o Secundário, mas realmente essa é uma batalha duríssima que vamos ter de enfrentar. E desculpe associar aqui outra ideia: muito dificilmente essa batalha pode ser ganha se não tivermos o devido cuidado com a formação de professores para essas áreas, técnicas e tecnológicas. Se não aceitarmos um determinado profissional que é informático numa empresa, que trabalha num jornal, numa fábrica, numa loja de fotografias, etc., não podemos ter um sistema educativo realmente entrosado com a sociedade e que cumpra realmente as grandes metas da formação para os jovens. Mas sem que isso implique a criação de uma carreira profissional para as pessoas que vêm das tintas…

Defende, portanto, a abertura da Escola a outros profissionais?

Aliás, isso já existe com os que são recrutados, ou eram, para as Técnicas Especiais, penso eu… Se me faço entender: o que estou a dizer não é acabar com os professores; eles existem, têm as suas carreiras, mas, ao nível dos cursos profissionalmente qualificantes, o sistema educativo tem que ter mecanismos relativamente simples para ter uma pessoa que sabe de fotografia num curso profissional em que precisamos de técnicos, e não temos que ter propriamente um grupo de professores de fotografia. Temos que ser mais flexíveis e mais plásticos nestas questões. Acho que essa é uma batalha que temos de vencer, e ela passa pela formação de professores das áreas técnicas, tecnológicas e artísticas – para não falar na dos outros professores, que, do meu ponto de vista, está também muito descuidada há muitos anos. Nós não estamos a formar professores para as dificuldades; para o multiculturalismo que existe hoje nas escolas; para os alunos que têm cada um o seu telemóvel e estão sempre a enviar mensagens; para enfrentar alunos que dominam as novas tecnologias com relativa facilidade, mas não as canalizam para o desenvolvimento das aprendizagens. Portanto, eu acho que nós estamos a formar professores para uma espécie de Escola que não existe, que já deixou de existir há muito tempo. Salvaguardando algumas honrosas excepções, eu diria que o panorama da formação de professores é francamente débil. Hoje, para dizermos que temos um bom curso de formação de professores, temos que saber se os jovens que de lá saíram foram para escolas difíceis e se conseguiram sobreviver – este é um indicador que temos de ter em conta em relação à qualidade da formação de professores; não é uma pessoa ir para uma escola em que os alunos são todos da classe média, em que tudo é muito fácil, tudo luz, tudo homogéneo. E é para isso que estamos a formar professores…

Mas, então, por que é que a formação não muda? De onde tem que partir a iniciativa?

Eu acho que tem de partir das políticas. Tem que partir de uma atitude diferente por parte das universidades, porque elas têm autonomia. E tem que partir de uma intervenção mais positiva das escolas relativamente às suas reais necessidades. Hoje seria interessante fazer-se um estudo – e existem alguns, mas não completos – acerca de como estão a ser formados os nossos professores de Inglês, de História… Quem é que dá as didácticas das disciplinas? Quem é que, dessas pessoas, tem real experiência do que é uma escola secundária, de como é uma escola básica,

Que tipo de contacto e que tipo de investigação existe nesses cursos de formação?

Como disse, e quero repetir isto, há honrosas excepções, mas que só confirmam a regra. Em algumas universidades, nós temos excelente formação de professores de algumas disciplinas, mas muito poucas. Na maior parte dos casos, o panorama é confrangedor.

A avaliação exige interacção, negociação, participação

A avaliação está na ordem do dia e é um dos campos de investigação do Domingos Fernandes. Que impactos se pretende que ela tenha?

Pensando em termos macro, digamos assim, e do lugar da avaliação no desenvolvimento do sistema educativo, neste momento, há um caminho que me parece irreversível, que é o da crescente autonomia das escolas, e outro que me parece oferecível, que é o da descentralização, da desconcentração das estruturas dos ministérios da Educação um pouco por todo o mundo. Agora, quando se fala de autonomia, nem todos falam da mesma maneira, porque alguns, sobretudo certos sectores da direita, vêm a autonomia como deixar as escolas entregues a si próprias, on their own, pondo lá um gestor (é a chamada visão gestionária da Educação) e criando uma espécie de mercado. Ora, isso é uma concepção mercantilista da Educação, com que eu não alinho de maneira nenhuma. Eu coloco-me numa posição democrática e num entendimento de esquerda, em que a autonomia tem a ver com a assunção de responsabilidades por parte das escolas, mas integradas numa rede, que é uma coisa que nos falta. Já nos idos anos 90 eu insistia muito na importância de as escolas secundárias estarem em rede e terem ligações privilegiadas, por exemplo, com o Ensino Superior, com o tecido económico e empresarial, e por aí fora. O entendimento que eu tenho de autonomia supõe que existe essa rede, que existe partilha de responsabilidade entre os responsáveis políticos e os diferentes actores locais e regionais, e que a responsabilidade pela eficácia e eficiência não pode ser assacada única e exclusivamente à Escola.

E qual é a importância da avaliação no percorrer desses caminhos?

Eu estou a falar da autonomia e da descentralização porque, nesta concepção de autonomia, a avaliação tem um papel fundamental para o desenvolvimento do sistema educativo no seu todo – a avaliação das escolas, a avaliação dos alunos e a avaliação dos professores. Mas é evidente que os entendimentos sobre a avaliação também não são os mesmos. Há quem, provavelmente, tenha a tentação de fazer da avaliação uma espécie de manual de boas maneiras, e quem sair fora desse cânone está errado e tem que ser punido, e quem está dentro está muito bem e tem que ser premiado! Não. A avaliação é uma prática social, é um processo que exige interacção, negociação, participação. A avaliação tem que ser pluridimensional, com a participação das pessoas, naturalmente sem prejuízo de dela retirarmos consequências, no sentido de que temos que investir mais na nossa formação, ou de que temos de alterar este ou aquele aspecto de organização e funcionamento da nossa escola. Sem prejuízo dessas consequências, a avaliação deve ter como principal objectivo melhorar a vida das pessoas, a vida das instituições e a vida da própria sociedade. Portanto, é um poderoso meio de discussão, de análise e auto-análise e de melhoria daquilo que, como profissionais, estamos a fazer no sistema educativo. É nesse sentido que eu vejo a avaliação, na perspectiva em que o Estado abdica de um conjunto de mecanismos de controlo, em favor das escolas, das redes e das próprias autarquias, mas guarda para si coisas fundamentais numa sociedade democrática, como a regulação, a visão estratégica, a orientação do sistema, a definição das grandes metas: nós queremos um sistema educativo em que os alunos desenvolvam este tipo de competências, este tipo de educação cívica, e temos aqui uns mecanismos que nos ajudam a regular e auto-regular o sistema. E, inclusivamente, as próprias políticas. Mas é evidente que há muitas especificidades…

No caso específico da avaliação do desempenho docente, os modelos que têm vindo a ser utilizados cumprem essa função? Há reflexos da avaliação ao nível da melhoria das práticas?

Bom, o que me ocorre dizer sobre isso é que é uma questão delicada…

Faz sentido avaliar os intérpretes das políticas (que acabam por sofrer consequências), avaliar os destinatários (que também acabam por sofrer), e não avaliar o sistema? Não fazer uma avaliação séria das medidas que são propostas, alteradas, suspensas, revogadas?...

Pois, exactamente... Mas hoje em dia, praticamente não há nenhuma medida política que não seja avaliada. Eu sei que isto não é do conhecimento geral, mas era bom que as pessoas soubessem que isso é verdade em praticamente todos os países democráticos da Europa. Aliás, aqui em Portugal, até há um livro, publicado recentemente por uma ex-ministra da Educação, com todas as medidas que tomou e as respectivas avaliações. Isso é a avaliação de programas e de políticas.

E, passe a ironia, as provas de aferição, por exemplo, devem ter uma avaliação positiva, porque continuam. Como é possível, no caso do 1º Ciclo, um ano lectivo que decorre de Setembro a Junho, acabar praticamente um mês e meio antes? Porque, mal ou bem, as escolas entendem, ou levaram-nas a entender, que aquilo são exames e, portanto, o ano termina ali…

Et voilà… O que é uma coisa estranha, não é?

Isto implica com a gestão e o desenvolvimento do currículo: até Maio, “despacha-se” Língua Portuguesa e Matemática, com treino intensivo para as provas; depois “dá-se” Estudo do Meio…

Lá está. Quando eu digo que, a nível do Ensino Básico, temos que ter um investimento muito forte na questão da gestão do desenvolvimento do currículo, por parte das escolas e dos professores, também tem a ver com isso. Porque eu sei que é assim. E sobre essa questão de ver as provas aferidas como uma espécie de exames, como algo que tem de ser preparado de uma forma em que nada mais se faz do que preparar os alunos para responderem às perguntas de Matemática e de Língua Portuguesa, eu julgo que alguma coisa tem que ser feita no sentido de alterar a situação. Mas eu queria dizer o seguinte: a avaliação não é uma ciência exacta, mas tem algumas características importantes. Por exemplo, a avaliação deve ser localizada; ela tem significado em determinado contexto e tem que ser credível nesse contexto. Uma escola pode desenvolver uma avaliação de docentes que – mesmo obedecendo a determinadas linhas de orientação do poder político para todo o país, mas de que as escolas depois se apropriam – faz todo o sentido, é credível (palavra muito importante em avaliação). E os seus resultados não são exactos, porque nós sabemos que nunca são, mas são plausíveis e são aceites por todos. Mas noutra escola, essa mesma avaliação não é credível, não é plausível, nem aceite por todos.

O que é um problema…

De facto, a partir do momento em que a avaliação tem influência – e do meu ponto de vista deve ter – na progressão dos professores na carreira, nós temos um problema complicadíssimo de resolver, que é a estandardização de procedimentos a nível nacional, no sentido de se obter uma coisa que não é passível de se obter de forma alguma, que é uma consistência de resultados em todas as escolas. Que é uma das coisas que os professores reclamam muito, e com alguma razão, mas o mesmo se poderá dizer dos alunos. E em relação às escolas… Ora, num sistema de colocação de professores como o nosso, é muito difícil caminharmos para uma avaliação que faça real sentido em cada escola. Agora, o que nós podemos – e penso que nos próximos anos estaremos em condições de o fazer – é discutir a possibilidade de as escolas terem algo a ver com o recrutamento dos próprios professores. Eu sei que é uma matéria delicada, que já foi abordada com os sindicatos, que normalmente reagem mal, mas é uma questão que tem de começar a ser abordada sem preconceitos e sem ideias muito feitas. Não acredito que isso se possa fazer de um dia para o outro, mas acho que tem de se ir discutindo… Porque, eventualmente, e eu sei que este pensamento não é muito ortodoxo, isto iria resolver muitos dos problemas que os professores sentem neste momento: com a questão das colocações, dos concursos… E penso que iria resolver o problema da avaliação, porque ela é passível de ter muito mais significado em algo que está ao nosso alcance, do que em algo que é indiferenciado, e em que temos de arranjar um procedimento igual para 150 mil professores em todo o país – isto é praticamente ingerível; não será por acaso que está proposta uma medida em que 40 e tal mil professores deixam de ser avaliados…

E isso não contraria os pressupostos da avaliação?

Pois… Sabe que a direita política tem sempre um discurso do rigor, da qualidade, da exigência… Mas depois, na prática, parece que se esquecem um pouco daquilo que dizem. Por outro lado, temos uma certa esquerda que tem alguma dificuldade em lidar com expressões como eficiência, ou eficácia… Mas a democracia está desse lado! Quando eu quero um sistema educativo com escolas autónomas, e não numa perspectiva de as lançar num mercado de Educação, a direita política diz que a democracia, as assembleias de escola, os conselhos de escola, ou as eleições para director, são coisas que não deviam ser. O que devia ser era um bom gestor, com ideias vindas das empresas, para governar as escolas. É evidente que eu não subscrevo nada disso. Eu subscrevo completamente a ideia de que a democracia está do lado da eficiência e do lado da eficácia, e não contra. E tenho alguma dificuldade em aceitar certos pronunciamentos em relação à importância que tem a qualidade da Escola. A qualidade é uma palavra que não nos deve meter medo – há diferentes entendimentos de qualidade, com certeza, mas acho que não devemos ter medo dessas palavras. O campo democrático e o campo da esquerda devem apropriar-se delas, porque essas palavras não são da direita. A direita fala nelas, mas depois é o que a gente vê…

Acha que ainda é possível a Escola ser um espaço de democracia?

Eu acho que as escolas continuam a ser instituições democráticas, em que há lugar ao debate; se não são…

Quer dizer, quando espaços como o conselho pedagógico ou os departamentos estão a ser desvalorizados… Quando os poderes estão praticamente concentrados numa pessoa… Quando essa pessoa quase pode perpetuar-se no lugar…

Repare, durante muitos anos, tivemos as escolas governadas por conselhos directivos, e houve escolas que funcionaram muito bem. E o sistema educativo português, que evoluiu positivamente e inquestionavelmente nestes últimos 30 anos, foi feito muito à base desse modelo. Mas, provavelmente, não podemos dizer que esse é o único modelo verdadeiramente representativo, que defende o interesse geral; provavelmente haverá outros. O modelo do director não colhe simpatias em alguns sectores (sobretudo da esquerda, sejamos claros), mas há outros sectores, também da esquerda, que o aceitam e consideram democrático, na medida em que há um conselho geral, onde estão representantes dos professores e onde se fez uma coisa, que eu realmente acho positiva, que foi a integração de elementos da comunidade. É claro que estamos aqui no plano dos princípios; e como princípio, deve ser acarinhado, porque há aqui um caminho a percorrer no sentido de as comunidades estarem cada vez mais interessadas na vida das escolas e a par do desenvolvimento dos projectos que são apresentados e votados nesse conselho geral. Agora, se me diz que há uma desvalorização do conselho pedagógico, dos departamentos, etc., eu penso que isso são ajustamentos que compete às escolas, aos próprios professores, irem fazendo. Porque essas instâncias estão consignadas; são instâncias de discussão, pedagógica e didáctica, fundamentais para o desenvolvimento do projecto da escola.

Escolas e professores podem e devem fazer a diferença

O futuro passa por reinventar a Escola. É uma frase do Domingos Fernandes…

Pois, eu penso que reinventar a Escola tem um significado muito especial. O que é que tem acontecido ao longo dos anos nos sistemas educativos? É que nós propomos um conjunto de medidas e de alterações sempre no sentido da democratização do sistema educativo (faltou-me dizer isto na questão anterior), e aí acho que não, acho que o nosso sistema ainda não é democrático – as escolas são democráticas, mas o sistema não é. Porque ainda não somos capazes de assegurar a equidade! Asseguramos praticamente a generalização do acesso, a massificação do acesso, mas não a massificação das aprendizagens. Os alunos não aprendem todos, e nós temos que os pôr todos a aprender. E nesse sentido acho que não temos uma Escola verdadeiramente democrática. Mas voltando à questão da reinvenção… Nós propomos medidas, mas, ao longo dos últimos 50 anos, verificamos que a Escola se mantém inalterada: o mesmo tipo de organização espacial e temporal, o mesmo tipo de equipamentos, tudo… E mesmo actualmente, com as novas tecnologias. Ou seja, de nada me adianta ter um quadro interactivo, ou um computador com não sei quantos megabytes, se eu vou utilizar exactamente o mesmo tipo de procedimentos que utilizava; se faço do quadro interactivo uma espécie de quadro negro com mais umas coisas… Não pode ser!

Por onde passa, então, a reinvenção?

Quando falo em reinventar a Escola, isso significa ter ideias relativamente à organização dos espaços, dos tempos e do trabalho das pessoas. Lá está, num quadro de autonomia das escolas, as pessoas podem organizar o currículo de formas diferentes. O que deve interessar ao Estado é que cada escola garanta que, no final do 9º ou 12º ano, os alunos tenham desenvolvido determinado tipo de competência. Como é que o conseguiram, não nos interessa. Portanto, quando falo em reinventar a Escola, é em reinventar também o currículo. Temos que o reinventar permanentemente, que o reconstruir, que o viver… O currículo tem a ver com a vida, com a sociedade, com as tragédias e com as coisas boas que existem lá fora. E nós temos que levar isso para dentro da sala de aula. Por isso é que eu digo que os professores têm de ter um certo cosmopolitismo, e as pessoas ficam a olhar para mim… Os professores têm que saber, têm que acompanhar os desenvolvimentos artísticos, do desporto, de tudo aquilo que, no fundo, faz a nossa vida. Porque os jovens vivem expostos a isso, todos os dias. E se não vivem, temos uma excelente oportunidade para os expor… Hoje, felizmente, vão muitas mais crianças aos museus. Que eu me lembre, na tal boa Escola de que fala a direita, acho que fui uma vez a museus, por minha iniciativa…

Se calhar não havia museus…

[risos] Essa tal boa escola tinha uma certa relutância em mostrar-nos a vida e como as coisas funcionavam. Portanto, a reinvenção da Escola passa por uma reorganização dos tempos e dos espaços, por uma reinvenção do lugar e do papel dos professores nas escolas, por ser muito mais aberta, flexível e diversificada do que aquela que temos.

A Escola pode fazer a diferença. É outra expressão do Domingos Fernandes. Pode ou deve?

Isso vem a propósito dos estudos sociológicos da escola de Chicago. Em 1966, o Relatório Coleman [Equality of Educational Opportunity Report] defendia que os alunos das classes sociais baixas não tinham qualquer hipótese de aprender e que, portanto, a Escola não fazia qualquer diferença. Depois houve outros estudos que mostravam claramente que sim. As escolas podem fazer a diferença se trabalharem realmente de forma diferente: se reinventarem o currículo; se usarem procedimentos de avaliação orientados para melhorar as aprendizagens dos alunos e não exclusivamente para os classificar; se usarem tarefas mais adequadas e mais interessantes para os alunos… Hoje é quase perigoso falar em tarefas interessantes, porque as pessoas julgam que é o facilitismo… Mas quando nós dizemos tarefas que tenham significado e sejam interessantes para as pessoas, não significa tarefas fáceis; significa tarefas bem escolhidas, em que as pessoas vão pôr o seu empenho máximo. Portanto, é nesta perspectiva de elevar o nível, digamos, que a Escola pode fazer a diferença. Isto é, as escolas e os professores podem fazer a diferença. Podem e devem.

Dos três grandes estudos realizados nos EUA na segunda metade do século XX (James Coleman, David Gardner, John Goodlad), o Domingos Fernandes considera que A Place Called School (1984) é o mais marcante. Quais foram as principais conclusões a que Goodlad chegou? Ainda são pertinentes?

Acho que são. Contrariando a ideia de que as escolas são todas diferentes, ele encontrou-as muito iguais, em termos de métodos para desenvolver o currículo, de organização dos tempos, de organização dos espaços. Portanto, uma das principais conclusões é que as escolas podem e devem responder de formas diferentes aos desafios que o currículo lhes coloca, porque os alunos não são todos iguais, nem podem ser tratados todos da mesma maneira; e se alguns não encaixam num modelo de Escola estandardizada, são automaticamente excluídos. Quer dizer, Goodlad veio mostrar a dificuldade que as escolas têm em ajustar o desenvolvimento do currículo à diversidade de população que as frequentam.

A propósito, e ainda relativamente aos desafios dos ensinos Básico e Secundário, acha que irão ter lugar na agenda política de Nuno Crato?

Eu espero que tenham! Mas são desafios diferentes. O do Básico, penso que é mais uma questão curricular, de desenvolvimento do currículo, sobretudo no 1º Ciclo e no 2º Ciclo. Provavelmente, um ajustamento curricular que até deveria ser mais profundo, no sentido de diminuir disciplinas – que é uma coisa muito complicada, por causa das questões dos professores, etc. Mas é incompreensível que alunos com 11 ou 12 anos tenham dez disciplinas. Isso não cabe na cabeça de ninguém! A nível do Secundário, a questão tem mais a ver com a consolidação de uma ideia de escola que rompa com a escola do século XIX, a que está muito indexada, com saberes académicos muito hierarquizados. No século XXI, não podemos continuar agarrados à escola do século XIX, ou à escola republicana, caracterizada por saberes hierarquicamente distribuídos, muito académicos, muito compartimentados, etc. Por tanto, temos que vencer esse desafio, e o desafio maior, que é a integração plena das escolas profissionais, dos discursos profissionais, na matriz do Secundário.

As evidências mostram que somos capazes

É professor-investigador na área das Ciências da Educação; antes, foi professor nos ensinos Básico, Secundário e Politécnico. Pelo meio, teve responsabilidades na Administração Educativa. Usando um eduquês muito em voga, quais são as evidências mais significativas das suas incursões ao “lado de lá”?

Bom, certamente vou repetir algumas coisas, mas… Uma coisa que pude constatar em várias circunstâncias é que em Portugal faltam ideias sobre a Educação; e parece-me que há opinião a mais e estudo a menos. Outra coisa, que me continua a marcar profundamente, é o facto de se investir tão pouco naquilo que é o cerne dos sistemas educativos e algo por que eu combato ainda hoje – a importância da aprendizagem. Também pude constatar, e isto com muita força, a falta de instrumentos, a falta de pensamento, de estudo e de investigação sobre diversas matérias em que os políticos têm que decidir e não há nada sobre o assunto – a decisão tem aí um problema sério, e isso foi algo que eu senti, a falta de conhecimento produzido que ajude a decisão. Senti com certo desgosto a tal questão de a Educação ser palco de arremesso político permanentemente e o facto de a sociedade ter tantas clivagens em relação a uma matéria que eu acho que deveria unir as pessoas. E aqui, tive a oportunidade de conhecer pessoas que, em conversa, manifestavam o seu total acordo com determinadas medidas e depois, na intervenção política, diziam completamente o contrário, por obediência partidária. Essa foi uma marca que me impressionou. Outra coisa que me impressionou foi as escolas funcionarem, terem pessoas que as põem a funcionar todos os dias, independentemente do que possa acontecer e das competências ou incompetências seja de quem for! Esse é um motivo de grande admiração pelos professores, pelos verdadeiros profissionais que, por todo o país, aguentam as escolas em situações que, às vezes, não têm descrição possível. O que também me marcou muito, quando estive no governo, foi a miséria – um termo absolutamente terrível – de muitas das escolas do 1º Ciclo. E isso nunca foi mostrado às pessoas! Uma vez fui a uma escola, não muito distante de Lisboa, que tinha dois alunos, e quando lá cheguei… Olhe, o que me saiu foi “nós já não temos Portugal para isto!”, porque realmente era uma coisa absolutamente inconcebível. Não foi fácil lá chegar, mas cheguei. A essa e a muitas outras... Finalmente, porque falou do lado de lá e do lado de cá, pude constatar que dizer mal é relativamente fácil; criticar é relativamente fácil; fazer… É um bocadinho mais complicado! [risos] Eu já tinha essa noção, mas senti que tinha de haver uma maior aproximação, digamos, entre quem produz conhecimento de forma crítica, sem a obrigação de garantir o funcionamento de milhares de escolas todos os dias, que são os académicos, e quem lá está. Que aceitem melhor quem lá está, e vice-versa: os que lá estão que aceitem melhor e que estejam mais abertos àquilo que é produzido como conhecimento. E aqui há um pormenor: eu acho que não há ninguém que não tenha já afirmado qualquer coisa do estilo “o ministério…”, “os burocratas do ministério”, “é preciso acabar com o ministério”…

O próprio Nuno Crato chegou a preconizar a “implosão” do ministério…

Pois, exactamente. Mas ninguém diz o que é o ministério! Estão a referir-se aos funcionários públicos que lá trabalham, a esmagadora maioria deles dedicadíssimos? Quando as pessoas, nomeadamente algumas que falam na televisão, dizem que “na 5 de Outubro estão uns indivíduos que fazem o facilitismo, que fazem isto e aquilo”, referem-se a quem? O Ministério da Educação é aquilo que os políticos que para lá vão querem que ele seja. E eu não sei quem é que lá está a fazer as maldades todas ao sistema educativo, mas sinto que há muito boa gente, dedicada, que é injustiçada, que são os técnicos superiores que lá trabalham – e muitos deles até são professores, ou foram! Portanto…

Uma última reflexão que queira partilhar…

Uma coisa que não referi ao longo da entrevista é que acho que há um pensamento muito negativo sobre o nosso sistema educativo; uma relação algo negativa com a Escola. A sociedade tem uma relação com as escolas que não é muito saudável, que podia ser mais acarinhadora, se me é permitida a expressão. E isso é muito negativo, porque normalmente não se reconhece – é pena que os interventores políticos e sociais não o reconheçam e digam abertamente – a distância brutal, o abismo, que existe entre a Escola pública de hoje e a de há 40 anos. Mas acho que isso tem um bocado a ver com o nosso fado: somos os piores, somos maus, não somos capazes…
Quando as evidências mostram que somos capazes.

Entrevista a Domingos Fernandes

Entrevista conduzida por António Baldaia

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