sábado, 12 de janeiro de 2013

Como se vive com um filho autista


Este texto de Cristina Margato foi publicado na edição de 31 Outubro de 2009 na Revista Única/Expresso:


Ter um filho autista não é algo que se possa prever. Tendo-o, um mundo desconhecido desaba na cabeça dos pais. A vida sucede-se entre barreiras e dificuldades.

Marco dá um forte esticão. O técnico acompanha-o como uma sombra. Um duplo corpo sobre o menino que foge por entre as árvores. Aos sete anos, tem um físico maior que a idade. É alto, um touro difícil de domar. Parece viver num outro mundo - onde os sons não entram. De regresso à sala do jardim-escola da Trafaria, o rapaz baterá com violência uma cadeira contra o chão. A pequena Mariana, dois anos e meio, assusta-se. Cai. Chora. Todos os técnicos se levantam. As outras crianças seguem serenas. Uma técnica beija e reconforta a menina. Outra desabafa: - É a primeira vez que a Mariana chora.
 
Uma reacção é uma festa

Mariana chora! Tem uma resposta, uma reacção. O incidente já não será uma lembrança da dificuldade em lidar com Marco - chegado àquela nova sala de Intervenção Terapêutica Intensiva para Autistas, da ABC Real, em Setembro passado. O choro da minúscula Mariana é motivo de comemoração. A reacção de uma criança com autismo é sempre uma festa. Um sinal de que se entrou nesse mundo inacessível, onde vivem. Que se derrubou mais um tijolo do muro que nos impede tantas vezes de comunicar.

Fim de intervalo na escola da Trafaria. Cada criança, das seis que frequentam a sala de terapia segundo o método norte-americano ABA (Applied Behavioural Analysis/Análise Comportamental Aplicada), trazido da Califórnia para Portugal por Albertina Marçal, é acompanhada por um técnico.

Um técnico por criança à mesa de trabalho, um técnico por criança à mesa de refeições, um técnico por criança no intervalo.

Meses antes, no Colégio Campo de Flores, na Caparica, onde funciona há cerca de um ano a primeira destas salas, onze crianças pequenas trabalham à frente de uma mesa. É a primeira turma-piloto do ABA em Portugal. Cada técnico português, formado pelos norte-americanos, encarrega-se de desenvolver e trabalhar uma das competências que qualquer outra criança da mesma idade adquire, em regra, sozinha. De 25 em 25 minutos, Marina, responsável pela sala, toca uma sineta. Nesse momento, cada criança é mudada de mesa, como se trabalhasse numa linha de produção de uma fábrica. É meio-dia. O trabalho delas começou às oito da manhã e está a chegar ao fim. Nenhuma, porém, dá sinal de cansaço ou indisposição.

Pais apanhados de surpresa

Ao contrário do que aconteceria em qualquer outra sala de aula com crianças da mesma idade, a presença de um estranho, a minha, não é notada. Ninguém me dirige o olhar ou a fala. Sou uma nuvem invisível. Na Caparica. Na Trafaria.

Mas, para que estas crianças chegassem aqui, muito teve de acontecer na vida delas e dos pais. Muito teve de acontecer também na vida de Albertina Marçal, mãe de um adolescente com síndroma de Asperger, fundadora da ABC Real Portuguesa e responsável pela 'importação' deste método.

Foi no momento em que Alexandra e Carlos equacionavam a possibilidade de ter mais um filho que o diagnóstico os apanhou de surpresa. Há muito que a família os alertava para alguns sinais perturbadores no comportamento do filho. Tiago tinha pouco mais de dois anos. Não falava, repetia exaustivamente alguns sons. Ao mesmo tempo balançava as mãos. Não reagia às conversas dos adultos, mesmo quando a voz lhe era dirigida. E, apesar disso, era um menino muito meigo.

Primeiros sinais

Durante longo tempo, os pais negaram a possibilidade de o filho ter algum problema. Comparavam o comportamento de Tiago ao seu quando crianças. Até o pediatra, um conhecido médico de Lisboa, dizia, a cada consulta de rotina, que tudo ia bem. Os pais repetiam para si próprios: "Ele tem muito tempo para falar e para fazer o mesmo que as outras crianças". A este pensamento juntavam um facto: Tiago tinha problemas de ouvidos. Uma otite serosa poderia ser a causa do atraso na fala. O médico otorrino concordava e pedia mais tempo.

Mário Relvas, pai de um autista de 21 anos, diz que o filho também lhe parecia surdo. Os primeiros testes, porém, consideram que tem uma audição normal. Aos seis meses, Bruno podia entreter-se durante horas apenas a olhar para as mãos. Uma obsessão que não passava despercebida aos pais.

Catarina Lourenço, mãe de Afonso, 9 anos, e Martim, 8 anos - o primeiro com o diagnóstico de autista e o segundo de Asperger - lembra o que a pediatra então lhe disse: "Não se preocupe. Einstein só falou aos quatro anos". Afonso também era muito meigo. "Muito calmo. Não dava trabalho nenhum", lembra a mãe. As suspeitas dos pais de Afonso começaram quando perceberam que não reagia ao nome. Mas mais uma vez não se tratava de um caso de surdez. O diagnóstico final só veio muitos anos depois. Quando a própria mãe, depois de muitas horas passadas na Internet, decidiu arriscar a pergunta: "Mas é autismo ou não?" Ouviu finalmente um sim do pedopsiquiatra Pedro Caldeira.

Afonso deveria ter então quatro ou cinco anos. Catarina diz, porém, que conhece pais a quem lhes foi dito directamente; e que isso, segundo os próprios lhe contaram, também não lhes fez nada bem.

Afonso era acompanhado no Hospital de Santa Maria, desde os dois anos, por uma psicóloga. Até aí impunham-se as palavras "perturbação da comunicação e de relacionamento". Na verdade, os autistas sofrem disso, mas de tantas outras coisas mais. Cada caso é um caso; e o espectro da doença é um leque tão vasto que é difícil definir exactamente o que faz um autista ou não. Uns são meigos, outros violentos. Uns falam, outros não. As variantes são infinitas. Mas têm algo em comum; todos erguem barreiras, dificultam a relação com o mundo.

O diagnóstico, por sua vez, não é fácil de conseguir. Médicos e técnicos têm medo de errar. Porque na verdade também erram, para o bem e para o mal.

Testes atrás de testes

Os primeiros testes do Tiago, realizados por uma técnica com experiência, não detectam qualquer problema. Mas as pressões familiares tornam-se maiores. A mãe muda de pediatra. Volta a repetir os testes. Por fim, o diagnóstico chega: "O Tiago tem uma perturbação do espectro de autismo", dirá Rosa Gouveia, pediatra do desenvolvimento, no Hospital CUF Descobertas.

A resposta a todas as dúvidas não sossega ninguém. Pelo contrário. Potencia uma avalancha de questões. E desta vez as respostas são ainda mais difíceis de obter. Se os pais de Tiago, em pleno século XXI, sentiram muitas dificuldades e incompreensões, Mário e a mulher, duas décadas antes, tiveram uma luta ainda maior: "Alguns profissionais de saúde não estão, ainda, devidamente sensibilizados para o autismo", desabafa Mário Relvas.

Calvário de consultas

Quando Bruno nasceu, os profissionais sabiam ainda menos. Mas no passado como hoje o processo de compreensão dos pais é quase sempre um verdadeiro calvário de consultas. Os pais de Tiago percebem que ele tem de começar a ser tratado. "Mas como?". Ao mesmo tempo surge outra questão mais íntima, dolorosa e igualmente difícil de colocar: "Porquê?"

Ao contrário de outras doenças, como a Trissomia 21, o autismo não é diagnosticável durante a gestação. Dificilmente se descobre antes dos 18 meses de vida. As causas são multifactoriais, além de que não se consegue saber exactamente quais os elementos determinantes para a criação de um espaço propício à emergência do espectro autista. Os testes genéticos às crianças são importantes. Mas, de modo algum, indicam o caminho a seguir, a forma como a intervenção terapêutica deve ser feita. Tiago, Bruno, Afonso fizeram-nos. Nenhum deles demonstra ter alguma alteração genética, alguma malformação.

Orfãos do Estado e do SNS

Entre as poucas certezas que há em relação à doença, a principal é a de que, quanto mais cedo houver intervenção terapêutica ao nível comportamental, melhores são os resultados. Mas nenhum pai está preparado para o que vem a seguir: um mundo de dificuldades, onde se sentem órfãos do Estado e do Sistema Nacional de Saúde.

Nesta fase, também não é raro um dos pais começar a sentir-se um pouco mais culpado, pensando que a carga genética que transporta é a responsável. Mas no íntimo dos dois tudo é posto em causa. Mesmo que não o confessem. A esta fase os especialistas chamam normalmente "luto". E sem o 'luto' cumprido não há como avançar. Ou seja, é imperioso aceitar a situação. Agir rapidamente.

Alexandra pede uma consulta de avaliação no Hospital da Estefânia, em Lisboa. Mas a resposta não se afigura imediata. Decide avançar para o sistema privado (gasta 350 euros). A consulta no hospital público só chega cerca de um ano depois. Nessa altura, Tiago já tinha iniciado tratamento. Faz terapia Teacch, outro método norte-americano, terapia da fala e psicomotricidade, no Centro de Desenvolvimento Infantil LogicaMentes, fundado por Cláudia Bandeira de Lima, psicóloga clínica e de desenvolvimento do Hospital de Santa Maria. O programa de quatro horas semanais de Tiago fica em 485 euros mensais. Os pais não recebem qualquer subsídio.

Mário diz que a lacuna ao nível de consultas de diagnóstico do Sistema Nacional de Saúde deixa campo aberto para que alguns privados monopolizem estas intervenções e as seguintes, ou seja, já na fase de acompanhamento, desenvolvimento, terapia.

Os pais informados sabem, porém, o quanto urge agir. A espera pode ter efeitos muito nefastos ao longo de toda a vida do filho; e os estudos existentes são unânimes em considerar que a eficácia do tratamento comportamental é muito maior quando aplicado, de modo intensivo, até aos quatro anos. O cérebro é mais plástico, flexível. Absorve melhor a aprendizagem. Depois todos os avanços são mais lentos. É, de resto, por essa razão que a grande batalha científica nesta área está em encontrar métodos de diagnóstico que possam ser fiáveis na mais tenra idade.

Autismo é prioridade para Obama

Barack Obama, presidente dos Estados Unidos, não é, de resto, alheio a este problema. Tornou o autismo uma prioridade na saúde infantil, e adjudicou 5 mil milhões de dólares à investigação nesta área, faz agora um mês. Os norte-americanos já gastam cerca de 60 mil milhões de dólares por ano nesta doença. Com o crescimento exponencial do número de afectados, que os estudos apontam como certo, julga-se que dentro de dez anos este valor andará entre 200 e 400 mil milhões de dólares. Aquilo que começa a parecer uma epidemia (não apenas norte-americana, embora as estatísticas deste país sejam as mais antigas e fiáveis) é também uma hecatombe económica.

Na fase de 'luto' dos pais deveria iniciar-se a ajuda psicológica. Raramente, porém, são encaminhados para serviços de psicologia pelos técnicos com quem se vão cruzando. Ou decidem avançar por meios próprios, pedindo ajuda ao médico de família, ou se entregam à dor e à alienação, mesmo que ainda não tenham presentes algumas das consequências da doença ao longo da vida. Têm de reaprender a lidar com o filho e com os sentimentos.

Famílias divididas

Catarina teve a sorte de ser acompanhada no próprio Hospital de Santa Maria. Alexandra desabafou com a médica de família. Em troca recebeu antidepressivos. Há também quem enfie a cabeça na areia numa tentativa de minimizar a importância da doença do filho. Muitos pais ouvem ainda o que não gostam, mesmo dos familiares ou dos técnicos. Não raras vezes, as famílias dividem-se. Todos têm opiniões, mesmo quando não fizeram nenhum esforço para se informar. O isolamento cresce. O muro é cada vez mais alto. E se os técnicos em geral recusam a ideia de muro, pais como Catarina não têm problema nenhum em assumi-lo. "A minha vida mudou a nível pessoal, social, profissional. É muito duro lidar com tudo isto. Se não encararmos o muro, nunca o vamos resolver. Estou farta do politicamente correcto", desabafa.

Catarina é bailarina da Companhia Nacional de Bailado (CNB). Quando se preparava para estudar outra vez e escolher uma nova profissão - consciente de que a vida de uma bailarina tem 'prazo de validade' -, descobriu que tinha um filho autista. O terceiro filho, Martim, também exigiria tratamento. É Asperger. A sua vida é um colete-de-forças. Não é fácil conciliar os seus horários profissionais e os do marido, seu colega na CNB, com as terapias dos miúdos.

No caso de Tiago, um dos primeiros embates ocorreu na escola, um colégio privado, onde inicialmente todos quiseram ajudar. A polémica surgiria a propósito de um pormenor. Na sala havia um espelho. O espelho provocava-lhe um comportamento repetitivo, uma estereotipia, que se não for correctamente contrariada agrava o autismo. Numa reunião, a mãe e a psicóloga que acompanha a criança pedem à directora da escola e ao psicólogo do colégio para retirarem o espelho. "Tem de se habituar como os outros meninos", foi a resposta taxativa. A psicóloga e a mãe ainda contrapõem: "Mas isso é como pedir a um paraplégico que deixe a cadeira de rodas e ande".

A escola não recua. A mãe ainda ouve: "Já sabemos que ele não vai ser engenheiro profissão do pai, mas ao menos gostaríamos que ele fosse autónomo".

Trabalho a tempo inteiro

A ignorância é democrática. E nem os técnicos de educação escapam. Mário, por exemplo, diz que teve muitos problemas a nível profissional, nomeadamente na altura em que era polícia.

Um ano depois do diagnóstico, surge a separação dos pais de Tiago. A situação tornara-se insustentável. Mais uma vez, como em quase toda esta história, os pais de Tiago cumprem estatísticas. "Um autista prende 24 horas sobre 24. Por isso, o cansaço surge e a incompreensão que nos afecta gera algum mal-estar", reconhece Mário.

Catarina e Mário, o pai de Afonso e Martim, continuam juntos após 14 anos de vida em comum. "Somos teimosos", diz Catarina. Albertina e o marido sobreviveram a tudo, mas Albertina não esconde: "Estamos cansados. Ser pai de uma criança destas é um trabalho a tempo inteiro, e isso é reconhecido nos Estados Unidos. Mário, que ainda hoje está casado, confirma que é difícil preservar o casamento: "Deixámos de ter tempo para nós como casal. Não podemos sair à noite, ir jantar fora, não podemos ter um momento para nós".

Os autistas exigem uma rotina muito disciplinada, e podem ser muito exclusivos nas relações. Delas dependem de uma forma extrema. Mário lembra o caso de um filho adulto que morreu apenas algumas semanas depois do pai ter sido internado num hospital.

O importante é não desistir

No caso de Bruno, é a mãe que costuma ir buscá-lo à escola desde pequenino: "Se for eu, tenho de o entreter até a mãe chegar a casa, caso contrário gera-se um mal-estar nele que o leva a ficar perturbado e a ter uma alteração radical no comportamento", conta Mário.

Ir a um supermercado, centro comercial ou a um restaurante pode ser um dos maiores desafios para os pais do Bruno. Mas ainda assim não desistem. Quando o conseguem, Mário publica a 'reportagem' no seu blogue(http://aromasdeportugal.blogspot.com). Cada passo é conquistado dia-a-dia. Em adultos, a perturbação é mais difícil de controlar: "Passam a ser adultos com força e voz grossa... e já não são aquelas criancinhas de quem os estranhos diziam 'mal-educados, fazia-lhes falta era um par de tabefes'", continua Mário.

Catarina está a sentir essa fase no filho. "Ontem, partiu a porta da máquina de lavar roupa, queria voltar a vestir a mesma roupa, que eu já tinha posto para lavar". Mudaram o professor de Afonso na escola pública que frequentava. "Ainda fizemos um abaixo-assinado... A referência dele na sala era o professor. Desde o início das aulas que grita todos os dias antes de sair de casa e atira-se para o chão". Não é duro só para ela e para o pai. A irmã mais velha de Afonso, Filipa, tem 14 anos e não escapa ao stresse de que todos sofrem na família.

"A minha filha pensa muito e pensa que, quando for grande, também pode ter um filho assim", continua Catarina. Na altura em que os pais de Tiago se separam, as despesas com o tratamento do filho já representam uma fatia significativa no orçamento familiar. Agora, só em terapias, Tiago custa 800 euros por mês, fora os 430 euros de colégio normal. Até ao momento não tem qualquer subsídio. No ABA, cada criança fica por mil euros/mês, sendo que a ABC Real conta com salas cedidas por instituições e que o pagamento de cada criança se esgota no salário de um técnico e nos materiais. Afonso e Martim pesam 900 euros por mês. Quanto a Bruno, continua dependente dos pais aos 21 anos. Mário diz não saber o que vai ser de Bruno se alguma coisa lhes acontecer.

"Vivemos com uma espada sobre a cabeça", desabafa Mário. Na voz triste percebe-se que está cansado de lutar.

Rita Costa, a professora de natação de Afonso (passou um ano com ele aos gritos dentro da piscina até ele aprender a nadar) e também terapeuta de psicomotricidade do Tiago recorda uma história muito triste: "Conheci uma mãe a quem um homeopata convenceu que iria pôr o filho a falar. Gastou imenso dinheiro. Fez imensas viagens. Mas o miúdo nunca falou. Um dia decidiu ter o segundo filho. Dizia que não aguentava a ideia de ter um filho que não lhe chamasse mãe".

Ler mais: In Expresso

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