terça-feira, 15 de janeiro de 2013

José Pacheco: “A crise é, também, da educação!”

Professor, educador, alfabetizador, cronista. A Escola da Ponte ficará para sempre associada ao seu nome. "Exilado", como gosta de gracejar, há doze anos no Brasil, mas aproveitando uma visita ao Porto, José Pacheco partilhou com o EDUCARE.PT a sua visão da educação e do mundo.

Deu muitas aulas e trabalhou em muitas escolas antes de, juntamente com duas colegas, conceber em 1976 o projeto Escola da Ponte, na Vila das Aves. José Pacheco foi professor no 1.º e 2.º ciclos do ensino básico e também na universidade. Porém, o seu fascínio está no ensino das primeiras letras. "Gosto mesmo é da fase da alfabetização como um mistério. É uma coisa maravilhosa!" 

A viver no Brasil há dez anos, José Pacheco levou a experiência da Escola da Ponte até Cotia, uma cidade perto de São Paulo. Há um ano e meio, nasceu lá uma outra escola para 200 crianças entre os 12 e os 14 anos, oriundas da favela e "atiradas fora das outras escolas". "Criámos um espaço onde o centro é uma tenda de circo e há volta há oficinas de mosaico, música, horta, matemática, ciências, língua portuguesa,skate, kart, biblioteca..." 

O EDUCARE.PT entrevistou José Pacheco durante uma das suas visitas ao Porto, cidade onde nasceu. Numa conversa autobiográfica, fica o registo de uma vida repleta de desafios nunca rejeitados. Ou a história de como um eletricista de profissão, quase engenheiro sem vocação se transformou num professor por provocação. 

EDUCARE.PT (E): Do seu longo currículo como educador, professor, que experiências destaca de uma vida dedicada à educação?
José Pacheco (JP): As experiências mais decisivas foram as que tive na infância. Nasci num meio degradado, pobre... não foi fácil. E aprendi algo que desejo nenhuma criança aprenda: a odiar o professor. Aprendi o que era a humilhação, a exclusão, porque era pobre, porque era estrábico, enfim... Essa foi uma experiência tremenda. Depois a experiência do desvio daquilo que eu desejava. Ninguém naquela região do Porto aspirava a ir para o liceu, ia para o curso profissional. Eu sou eletricista de profissão. E o que eu tenho a ver com isso? Nada. 

Seguindo esse caminho, entrei no Instituto Superior de Engenharia. Iria ser engenheiro eletromecânico, aliás quase todos os meus amigos são engenheiros... Aconteceu que, tendo irmãos mais novos, eu os levava à escola e aí tive uma experiência terminal. Um dia a professora do meu irmão Rui convidou-me a ir a uma palestra de um professor, chamado Lobo, de que ninguém fala, e talvez fosse dos maiores professores que Portugal já teve. Quando comecei a escutar esse professor, fiquei desorientado. Nada daquilo que ele dizia tinha a ver com a ideia que eu pensava ser uma escola. Ele nunca soube a importância que teve para mim. Nessa semana abandonei o curso de Engenharia e fui-me matricular para fazer exame na escola do Magistério do Porto. As experiências escolares foram diversas, mas a maior de todas foi-me dada na Escola da Ponte. 


"As experiências mais decisivas foram as que tive na infância (...) aprendi algo que desejo nenhuma criança aprenda: a odiar o professor."





E: Foi o idealizador do projeto educativo da Escola da Ponte, na Vila das Aves, que se mantém desde 1976 em funcionamento. Como é que tudo começou?
JP: A resposta tem um pouco de história autobiográfica, e eu peço desculpa de falar em termos pessoais, porque o projeto da Ponte é coletivo, de uma equipa, e não meu. Quando vamos para a educação, vamos por uma de duas razões: por amor ou por vingança. Eu confesso que fui por vingança. Jurei a mim mesmo que nenhum aluno meu passaria pelas situações de humilhação e exclusão por que eu passei. Para mim seria inadmissível que um aluno não aprendesse. Estávamos no tempo da ditadura e eu dava aulas muito bem dadas. Era o que me diziam... Ainda assim, no fim de cada ano havia sempre uma parcela de alunos que não aprendia, que reprovava. Eu questionava-me: Se eu dou aulas tão bem dadas, por que razão eles não aprendem? Não me conseguia vingar!... [risos] Comecei a pensar que havia qualquer coisa de errado. 

Quando cheguei à Ponte, aceitei lecionar uma turma a que chamavam "turma do lixo", uma turma composta de jovens de 14 e 15 anos que não sabiam ler nem escrever, que batiam nos professores. Perguntei àqueles jovens: Porque não sabeis ler? E eles responderam: "Porque as professoras todos os anos nos falam do a, e, i, o, u, do pa, pe pi, pó, pu, do saltinho do pardal, da ondinha do mar. E, depois de darmos a primeira e a segunda página do livro, não entendemos mais nada." Olhei para eles e pensei: Mas é assim que eu ensino, se continuar a ensinar assim eles vão continuar a não aprender.

"Compreendi que não havia dificuldades de aprendizagem neles, mas de "ensinagem" em mim. Eles não aprendiam porque a escola não lhes contemplava a diversidade."

E: Pôs em causa a forma como lecionava?
JP: Nesse momento senti a primeira iluminação. Compreendi que não havia dificuldades de aprendizagem neles, mas de "ensinagem" em mim. Eles não aprendiam porque a escola não lhes contemplava a diversidade. Cada um era um ser único, dotado de um ritmo e modo de pensar próprios. Se fosse hoje, falar-se-ia de estilos de inteligência. Mas nós ensinávamos a todos da mesma maneira, no mesmo lugar e no mesmo horário. Interroguei-me, novamente: Será que tem de ser assim? Porque há aula? Porque dou aula? Quando percebi que dar aula é inútil e prejudicial, o chão fugiu-me debaixo dos pés - eu só sabia dar aula. O que iria fazer da minha vida? Mudar de profissão? 

Senti vontade de voltar para a engenharia. Entretanto, conheci professores tão desorientados quanto eu e duas professoras da Escola da Ponte, e tudo mudou. Elas sentiam o mesmo desconforto que eu sentia. Quando lhes falei sobre isso, com elas iniciei um caminho de reflexão-ação, que continua... buscamos compreender porque dávamos aulas, por que razão uma aula durava 50 minutos, porque aplicávamos testes, porque organizávamos as escolas em classes ou anos de escolaridade... Lendo teoria e modificando a nossa práxis, concluímos que nada disso tinha fundamento científico. Que teríamos de procurar alternativas para esses arcaísmos pedagógicos 

E: Está a dizer que o modo como a escola se estrutura não tem razão de ser?
JP: Nem lógica, nem bom senso... De científica não tem nada! Desde o século XIX, ninguém se atreve a conceder suporte teórico à existência de aula, à divisão cartesiana em turmas e anos... Nada disso tem fundamento. Caberia perguntar: se não tem fundamento porque está na lei? 

Quando começamos a estudar diferentes propostas teóricas, diversos pedagogos e referências para melhoria da nossa prática pedagógica, agimos praxeologicamente, reelaboramos a nossa cultura pessoal e profissional e melhoramos as aprendizagens dos nossos alunos. A Escola da Ponte não é um modelo, nem adotou uma só linha teórica. Nela converge uma multirreferencialidade de tendências, do Freinet ao Piaget, de Freire a Ferrer, de Morin a Deleuze... 

E: Por tudo isso, a Escola da Ponte tem subsistido a várias políticas educativas. Que desafios enfrenta atualmente?
JP: A Ponte é um ato de resiliência. Mas atualmente o projeto está em risco de acabar. Eu não queria que a Escola da Ponte fosse tratada de modo privilegiado, mas ao menos que fosse objeto de estudo de escolas e do Ministério da Educação e Ciência. Ela é estudada por muitos estrangeiros, mas, como toda a gente sabe, santos da casa não fazem milagres.

"A Escola da Ponte não é um modelo, nem adotou uma só linha teórica. Nela converge uma multirreferencialidade de tendências, do Freinet ao Piaget, de Freire a Ferrer, de Morin a Deleuze..."

E: Os alunos da Ponte são avaliados e têm bons resultados?
JP: Dos melhores. Os nossos antigos alunos, alguns com mais de 50 anos, são exemplos de pessoas de bem, que reivindicam e fazem valer os seus direitos. Mas talvez isso não convenha a um Portugal cativo de uma democracia virtual. 

Périplo pelo Brasil 
E: Deixou Portugal e atualmente vive no Brasil. O que aproxima e distancia o sistema educativo português e brasileiro?
JP: O que aproxima é o modelo que ainda hoje é hegemónico, tanto num lado como no outro do oceano, as escolas funcionam do mesmo modo. O que distancia é a característica brasileira da contradição, ou seja, temos no Brasil as escolas piores e melhores que se possam imaginar, algo que em Portugal não existe. Aqui existe o meio termo, lá é uma coisa ou outra. E nem faço a distinção entre o privado e o público. Conheço escolas privadas muito mazinhas e escolas públicas de excelência. 

Mas aquilo que mais diverge em relação a Portugal é que os professores portugueses estão imersos numa profunda crise de desânimo, no imobilismo, coisa que no Brasil não se sente. Os educadores brasileiros estão a despertar para algo que tem a ver com isto: o Brasil neste momento é a sétima potência económica mundial, mas também é dos países menos bem colocados no ranking do PISA. Os educadores brasileiros começam a tomar consciência de que, para além do progresso económico, tem de haver oportunidades de igualdade social, justiça social, e que isso pode ser alcançado através de outra educação. 

E: O sistema educativo português poderia ir beber alguma coisa ao brasileiro, nós vivemos a aspirar pelos modelos dos países nórdicos, finlandeses, e os da América Latina, será que não seriam mais próximos da nossa cultura, mais próximos das nossas mundividências?
JP: Sem dúvida. Eu aprendo muito no Brasil. Portugal também poderia aprender. Mas poderia aprender muito ainda com os portugueses. É preciso compreender que os colonizadores hoje poderão vir a ser colonizados. Acredito que os BRIC [sigla criada por Jim O'Neill para agrupar Brasil, Rússia, Índia e China] serão o eixo futuro da educação e não apenas do comércio. O Brasil ainda tem de resolver alguns problemas estruturais e libertar-se de uma administração burocratizada. Mas sinto que se aproxima uma revolução educacional. Portugal poderia não agir como um país que pensa que o centro da inovação educacional está na Europa. O centro deslocou-se... Portugal poderia fazer uma migração de aprendizagem no Sul.

"Os educadores brasileiros começam a tomar consciência de que, para além do progresso económico, tem de haver oportunidades de igualdade social, justiça social, e que isso pode ser alcançado através de outra educação."

E: O Brasil pode ser um destino para os professores escaparem à crise?
JP: Eu lamento que esteja a acontecer esta necessidade de os professores terem de emigrar. No último ano, entraram milhares de engenheiros no Brasil. A crise está aí e as pessoas não conseguem organizar as suas vidas. Vale a pena considerar o Brasil como destino, até para se fazer algum intercâmbio de ideias e projetos. Mas a crise é, também, da educação. É preciso compreender que o modelo epistemológico, que ainda hoje orienta as políticas, está errado. 

Escola 3.0
E: A escola tem vindo a perder o seu papel exclusivo na estruturação do conhecimento. Como vê a concorrência que outros agentes educacionais, como os novos media, fazem à escola?
JP: O Pierre Lévy dizia que as escolas perderam o monopólio do saber, só mantêm o da acreditação. Daqui por algum tempo, nem isso. Em vários condados dos EUA as escolas estão a fechar, porque o homeschooling, o unschooling e outros schoolingsacabaram com as escolas de aula com professor-papagaio. A Kan Academy foi criada por um americano, quando percebeu que o sobrinho quase nada aprendia na escola. Preparou pequenas apresentações em suporte digital, enviou-as ao sobrinho... e o sobrinho de Kan aprendeu. Então, um senhor chamado Bill Gates decidiu financiar a iniciativa. Essa academia, que visitei há cerca de um mês atrás, sugere a competição entre a web 2.0 e a 3.0 e o atual modelo de escola. 

E: A escola perde...
JP: Perde! O que o aluno vai fazer à escola se pode aprender com o computador? O problema é que estamos a gerar, paralelamente à escola, monstrinhos de computador que não olham para os lados e não percebem a existência do outro. Há algum tempo atrás, presenciei dois irmãos nos seus quartos, um ao lado do outro, a falar pelo Twitter. Isto é o cúmulo. Nunca houve tantos instrumentos de comunicação e nunca tão sozinhos estivemos. A escola desenvolve a solidão, tal como com as novas tecnologias mal aproveitadas. O que se faz hoje na escola? Espaços chamados laboratórios de informática e redes digitais para quê? Hoje com um aparelhinho de mão já tenho acesso à Internet. Para quê colocar computadores nas escolas? Para gastar dinheiro e gerar lixo digital a curto prazo? 

O elemento humano é necessário, o professor é indispensável. Mas, se os professores se mantiverem ancorados em práticas tradicionais, com ou sem suporte virtual, as escolas deixarão de existir. Acompanho um projeto designado por "comunidades de aprendizagem". O conceito tem sido trabalhado na Universidade de Leeds. Para surpresa minha, já há cinquenta anos, um brasileiro de nome Lauro de Oliveira Lima escrevia sobre o assunto. Sugeria uma escola-espaço de convivencialidade, onde jovens e adultos vão para partilhar o que aprendem em projetos de desenvolvimento local. Pessoas que têm acesso livre à Internet e aprendem matemática, português, ciências, através de projetos, num projeto de sociedade sustentável. Os alunos aprendem a transformar a informação em conhecimento e a partilhá-lo. Para tal, não precisam de ir à escola, ouvir aulas todo o dia.

"O elemento humano é necessário, o professor é indispensável. Mas, se os professores se mantiverem ancorados em práticas tradicionais, com ou sem suporte virtual, as escolas deixarão de existir."

E: A escola pública vai subsistir à crise económica?
JP: Muitas vezes as situações de crise são oportunidades de transformação social e quero acreditar que ainda haja professores que acreditem que podem mudar o paradigma de escola que temos. Continuo esperançoso. E ativo. Quem quiser ver uma prova da possibilidade da redenção da escola poderá acessar a net e estudar o projeto Âncora...

Entrevista de Andreia Lobo

In: Educare

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