sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

A menina que não falava

Foi em setembro que te conheci! 

A minha primeira aluna, enquanto professora do Ensino Especial (ainda não especializada). 

Conheci-te Alice... caso estranho o teu! 

Lembro-me que o teu diagnóstico era mutismo seletivo. Sabes o que é Alice? É um estado de ansiedade social. És capaz de falar com as pessoas que tu "eleges", normalmente através da vinculação afetiva, mas és incapaz de te expressar verbalmente em determinadas situações. Por isso, privas-te severamente de participar em atividades de grupo, por exemplo. É como uma forma de extrema timidez. Assim, as pessoas como tu podem passar todo o tempo completamente caladas na escola, por exemplo, durante anos, mas falar livremente ou excessivamente em casa. 

Pois e agora? O que fazer? Perguntava-me. 

Passei horas a estudar estratégias para te tirar daquele ensimesmamento em que vivias. Foste a minha primeira frustração em termos pessoais e profissionais. Nunca falavas comigo nem com os teus pares... mas o curioso é que sorrias. 
Eras filha de um segundo casamento. Tinha o teu pai, nessa altura, 65 anos e a tua mãe 20 e poucos anos. Nunca te deixaram crescer, não por mal, mas por superproteção! Eras o centro daquela família. Tudo girava à tua volta... à tua volta. 

Tinhas tu 14 anos... e ainda era a tua mãe que te dava banho, que te vestia e que dormia todos os dias contigo desde o teu nascimento. 

Falei com o teu pai - eras a menina dele - falou-me com tanto carinho de ti. Achava ele que era assim. Não tinha dúvidas que estava correto! Nem te deixava fazer educação física, para não te expores, para não te magoares fisicamente e sobretudo porque a mãe não estava lá para cuidar de ti. O que ele não compreendia é que as atitudes de superproteção como as que tendiam a minimizar ou ignorar o teu problema e que tinham como objetivo não provocar o teu sofrimento não faziam mais que reforçar e incrementar o teu mutismo. 

Será que ainda te lembras de mim, Alice, depois de tantos anos? Será que deixei alguma marca na tua vida tão especial? 

Eras a menina que não falava. 

Estudei teóricos de renome nacional e internacional, estudei teorias explicativas, mas tu não encaixavas... tu eras simplesmente TU! Única! 
Contigo percorri "mundo". Nada resultava. Ouve alturas em que pus em causa o meu trabalho, a opção escolhida. Achei muitas vezes que não era capaz. 
Até que um dia... 

Deixei-me de teorias e deixei-me levar pela minha intuição, pela minha capacidade de improvisação, pelo afeto, pela tua confiança em mim e... 
Percebi rapidamente que eras muito vaidosa, andavas sempre com a tua caixinha de maquilhagem e com roupas novas. Foi então aí que me "esqueci de todas as estratégias teóricas" e inventei e reinventei, por ti e por mim, novas formas de chegar a ti e ao teu mundo. 

Comecei a falar-te da tua beleza, do teu bom gosto para as roupas e muito lentamente fui-te conquistando... até ao dia em que finalmente falaste comigo e disseste-me que querias ser como eu: "Tu és linda professora, quero ser como tu". Fiquei atónita! E continuaste "Hoje quero que sejas tu a maquilhar-me!". Foi extraordinariamente perfeito! 

Peguei, então, no teu batom, nas tuas sombras e em todo o meu amor por ti e certamente no teu amor por mim e maquilhei-te com todo o cuidado, percorrendo carinhosamente a tua linda face redonda. Foi a primeira vez que me deixaste tocar-te! À medida que desenhava o teu rosto, falava tranquilamente para que o processo da tua entrega fosse completo realçando a tua beleza e explicando-te em todos os passos, numa linguagem simplista o que estava a fazer. 

Sabia que "aquele" era o momento crucial, que tinha entre mãos a tua conquista ou o teu ensimesmamento para sempre. Foi, então, que percebi que mais do que "saberes teóricos", os afetos, o toque têm o poder do milagre! 

Um dia, lembrei-me que a tua turma tinha aulas de dança. Tu adoravas ouvir música e, curiosamente, gostavas de música mexida. 

Falei com o teu pai - nunca conheci a tua mãe, apesar da minha insistência - para te deixar participar nestas aulas, ao que o teu pai me respondeu imediatamente e em tom altivo "NÃO"! Fiquei chocada! Mas não desisti da ideia. 

Peguei em ti e fomos simplesmente assistir a uma dessas aulas. Sentamo-nos muito juntinhas de mãos dadas a observar a aula. Vi-te sorrir! Mas desta vez, o teu sorriso era diferente. Então começámos a frequentar as aulas de dança como observadoras, claro! Percebi imediatamente que naquele espaço ainda eras mais feliz! 

Precisava avançar contigo. Foram precisos dois anos para falares comigo mais abertamente. 

Como estava a dizer, íamos sempre às aulas de dança. Como eu própria gostava de dançar, comecei a dançar para ti... e tu sempre sentada e sorrias, sorrias muito... parece que ainda te estou a ver! 

Após várias aulas, ainda sentada na tua habitual cadeira, começaste a levantar um braço, depois o outro e deixaste-te levar pela música, mas sempre sentada. Uns dias após esta conquista, levantei-te e começámos a dançar as duas sempre de mãos dadas. Estávamos ambas felizes e unidas pela cumplicidade que tínhamos estabelecido. Lentamente foste-te libertando... Um dia, largaste-me as mãos quando fizemos o "comboinho". A turma estava perplexa. Lembro-me ainda de as funcionárias e outros alunos expiarem por debaixo da cortina. O "caso" tornou-se famoso! 

O milagre acabou por acontecer! Conseguiste dançar livremente! 

Mais uma vez, falei ao teu pai com muito receio, pois tinha ido contra a sua autorização. Contrariamente ao esperado, ele ficou feliz! Para meu maior espanto ele já sabia, tu própria lhes tinhas contado. E em casa dançavas. Deste uma nova música ao teu lar. Agora dedicavas-te a comprar CD. 
Um dia falei-te de Anne Frank, da sua "prisão" e da sua "libertação" quando começou a relatar os seus sentimentos no seu diário que se tornara no seu melhor amigo. Mexi contigo. Já o tinha feito, mas de outra forma. 

Certa vez, com alguma apreensão, desafiei-te a fazeres o mesmo. Ficaste calada e eu penalizando-me pelo meu pedido. No dia seguinte, chegaste com uma folha com meia dúzia de frases. Usavas uma linguagem infantil, por vezes abebezada. Dei-te o "tal reforço positivo" e abracei-te e tu abraçaste-me (como é importante abraçar). 

O teu primeiro relato, o segundo, o terceiro e por aí fora... eram sempre iguais, sempre rotineiros. Os teus dias sucediam-se sem margem para o imprevisto. Os teus dias resumiam-se ao vestir, higiene diária, refeições e pequenos passeios para as compras ou para a casa da avó. Era sempre assim... repetitivos, mecânicos. Um dia pedi-te para relatares os teus dias na escola. E tu fizeste-o! Será que ainda te lembras, Alice? 

Percebi de imediato que havia quase outra Alice em ti: a Alice sonhadora, a Alice da escola... tu até te apaixonaste, lembras-te? Só nós as duas é que sabíamos. Era segredo! E tinhas bom gosto - apaixonaste-te pelo rapaz mais giro e mais cobiçado pelas meninas da turma. Não o fazias por menos... 

Quando finalmente aprendemos a falar uma com a outra com a mesma linguagem; quando aprendemos o desejo urgente de estarmos uma com a outra; quando, finalmente, te predispuseste a sonhar... foste embora Alice. Fizeste o 9.º ano e foste embora. 

O que será feito de ti, Alice? Será que ainda te lembras de mim? Será que continuas a sonhar? Ou será que foste remetida para um novo silêncio? 
Nunca te esquecerei! Nunca esquecerei o tanto que aprendi contigo. Nunca te direi adeus! Foste embora e eu também. Tive de ir para outra escola. 

Por: Manuela Pereira

In: Educare

1 comentário:

  1. Adorei ler a vossa história!!!!
    Felicidades para as duas onde quer que estejam.

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