terça-feira, 18 de março de 2014

Crianças com problemas de saúde mental sem acompanhamento

João (nome fictício) foi várias vezes abandonado pela família, viveu até aos 10 anos numa instituição, até Ana Martins o conseguir adoptar. O seu percurso de vida, diz a mãe, explica muitos dos seus problemas: “Teve uma depressão, tem dificuldade em concentrar-se, em aprender, tem baixa auto-estima, quando alguém grita ele acha que estão a gritar com ele”.

João foi desde os seis anos acompanhado por uma equipa no centro de saúde de Loulé, com médico de família, psicólogo, enfermeiro, terapeuta ocupacional, com supervisão de um pedopsiquiatra que ia de Lisboa ao Algarve de dois em dois meses. Os chamados Grupos de Apoio à Saúde Mental Infantil receberam dois prémios de boas práticas e foram apontados como exemplo a expandir a todo o país. O protocolo que lhes servia de suporte está suspenso há mais de dois meses. A Administração Regional de Saúde do Algarve (ARSA) responde que existe uma proposta para a realização de um novo protocolo igual ao actual.

O funcionamento destas equipas multidisciplinares está suspenso desde o final de Dezembro. Resta às famílias de crianças com problemas de saúde mental rumar a Lisboa, mas uma viagem para dois de autocarro não fica por menos de 45 euros, diz Ana Martins, fora o resto das despesas. Muitas crianças poderão deixar de ter acompanhamento, alerta o pedopsiquiatra Augusto Carreira, que criou este programa que funciona há 13 anos.

Face à inexistência de pedopsiquiatras na região algarvia foi criado em 2001 este protocolo entre a Administração Regional de Saúde do Algarve e o Departamento de Pedopsiquiatria do Hospital Pediátrico de D. Estefânia, em Lisboa. Os pedopsiquiatras da unidade lisboeta iam ao Algarve de dois em dois meses analisar os casos de crianças com problemas de saúde mental sinalizadas pelos médicos de família. Estavam envolvidas oito equipas a funcionar em centros de saúde de todo o Algarve, constituídas por psicólogos, medicina de família, enfermeiros, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais e da fala, a quem foi dada formação específica na área da saúde mental infantil pelo hospital da capital.

Os pedopsiquiatras de Lisboa davam directrizes aos médicos de família na prescrição de medicamentos e terapias a seguir. Estavam envolvidos 68 profissionais e até 2012 tinham sido seguidos 3700 meninos dos 3 aos 12 anos, refere um relatório disponível no site da ARSA. O mesmo documento diz que o programa trouxe várias vantagens, entre elas “não retirar a criança do seu ambiente natural”, evitar deslocações a Lisboa, diminuir a despesa do Sistema Nacional de Saúde e proporcionar melhor adesão das crianças e família às terapêuticas.

A experiência, que não existe em mais nenhuma região do país, foi considerada exemplar. Recebeu em 2008 o Prémio João dos Santos, instituído pela Associação Portuguesa de Psiquiatria da Infância e da Adolescência, em 2009 recebeu o prémio “Prevenção da Doença” instituído pelo Alto Comissariado para a Saúde. No Relatório da Comissão Nacional para a Reestruturação dos Serviços de Saúde Mental, que traça o rumo que deve ser seguido nesta área até 2016 na área da infância e da adolescência, as equipas do Algarve são dadas como exemplo a expandir às outras regiões do país.

Augusto Carreira, o pedopsiquiatra que coordena o programa diz que não entende a decisão que deixa sem assistência todas as crianças com problemas de saúde mental da região até aos 13 anos. “É uma decisão injustificável”. Informa que existe apenas uma pedopsiquiatra no Hospital de Faro que apenas assiste adolescentes daquela parte do Algarve e que está de baixa por doença. “Há centenas de crianças, muitas medicadas, que estão sem supervisão. As pessoas não vêm a Lisboa, estão ao abandono”.

O médico refere que o Algarve é uma região “com graves problemas económicos e com muitos problemas sociais, com uma população muito flutuante, marcada pelo trabalho sazonal. As crianças sentem a crise, sentem a insegurança à sua volta”, diz. Defende que é uma zona do país que, do ponto de vista da saúde mental infantil, “merece uma atenção particular. Tem muita imigração, famílias muito desestruturadas. Há crianças muito entregues aos avós”. Os problemas mais frequentes são “perturbações de comportamento". "É um diagnóstico muito lato que por detrás pode ter depressões”, também há problemas “com dificuldades de aprendizagem e situações mais graves de psicose”.

A Administração Regional de Saúde do Algarve responde que, tendo terminado no final de Dezembro de 2013, existe “a proposta de um novo protocolo, em tudo semelhante ao anterior”, mas agora com o Centro Hospitalar Lisboa Norte-Hospital de Santa Maria, “o actual hospital de referência da Região do Algarve na área da pedopsiquiatria no âmbito da Rede de Referenciação Hospitalar”. O objectivo, diz-se, “é continuar a assegurar e se possível reforçar o apoio na área da pedopsiquiatria aos Grupos de Apoio à Saúde Mental e Infantil. Aguarda-se a sua formalização.” A ARSA não respondeu às perguntas do PÚBLICO sobre o impacto que a suspensão do programa está a ter no acompanhamento das crianças.

João deixou de ser seguido por estas equipas porque ultrapassou os 13 anos, foi acompanhado dos 6 aos 10 anos, foi medicado para a agitação, fez terapia ocupacional e psicoterapia, e a equipa articulava com a educação especial da escola, diz a mãe. Ana diz que João “necessitaria de acompanhamento de psicoterapia semanal”, no privado é-lhe impossível pagar, o mais que consegue por estes dias é ir três vezes por ano a Lisboa”.

"Profunda preocupação"
O director do Programa Nacional para a Saúde Mental, Álvaro Carvalho, diz ter apenas conhecimento informal da suspensão do protocolo, sabendo de médicos de família do Algarve que medicaram crianças com psicotrópicos com orientação de um pedopsiquiatra e que agora não sabem o que fazer. Encara a suspensão “com profunda preocupação". "Só conheço referências elogiosas ao projecto, que cobre 80 a 90% das crianças do Algarve. Nasceu porque estas crianças eram encaminhadas para as urgências em Lisboa, com todos inconvenientes das deslocações, onde acabavam por nunca ser vistas pelo mesmo médico”.

Álvaro Carvalho diz que “não encontra motivos racionais nem informações consistentes para esta medida súbita tomada sem informação prévia”. Quanto à informação de passar a ser o Hospital de Santa Maria a assegurar este serviço, o responsável diz que a unidade só tem dois a três pedopsiquiatras, “Não tem elementos suficientes sequer para as necessidades internas. Como é que vai alargar a sua actividade a áreas tão distantes?”.

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