Um, dois, três segundos e o relógio pára. Mais quatro, cinco, seis segundos e a mãozita carrega no botão para que o tempo não avance. O pequeno João Pedro não ganha o jogo de xadrez ao professor Rui Pereira, mas esforça-se. "Muito bem jogado João, muito bem", diz o professor. O relógio é implacável. "Tentaste fazer umas belas malandrices, muito bem", acrescenta no final da jogada. Segue-se Rodrigo. Concentração, raciocínio rápido para movimentar as peças. E o relógio volta a parar. O professor quer que Rodrigo perceba o que deve fazer para evitar o xeque-mate. O resto da turma, crianças com 5 e 6 anos, debruça-se sobre o tabuleiro e espera por uma resposta que acaba por chegar. Na Escola dos Gambozinos, no Porto, o xadrez é apenas uma das muitas maneiras de aprender. "O xadrez é um instrumento ao serviço da aprendizagem", explica Rui Pereira.
"Não percas a concentração. Como consegues que o rei se defenda? A dama aponta ao rei e diz ?estás preso'. Está ou não?". Rui Pereira joga xadrez com Ísis, de 6 anos. O xadrez é mais do que um jogo, é uma forma de trabalhar aspectos que vão menos bem em outras disciplinas e conduzir à decisão, a pensar e resolver sob pressão. A condução do jogo é feita a pensar em cada aluno, com exercícios específicos. "Ísis foi um prazer jogar contigo." Apertam-se as mãos e arruma-se o tabuleiro para o jogador que se segue. A sala do xadrez tem fotos a preto e branco dos alunos, uma constante nos restantes compartimentos. Tem um fogão de sala antigo, um painel com trabalhos e uma gaiola com coelhos. Xadrez terminado, segue-se a hora do conto. Os 14 alunos sentam-se no chão para escutar mais uma parte da história de Peter Pan. Abre-se o livro com ilustrações de Paula Rego. Olhos e ouvidos ficam em alerta.
A Escola dos Gambozinos, para crianças dos 3 aos 11, 12 anos, tem escadas de madeira, fotos e trabalhos nas paredes, cortinas com pautas de música, sofás antigos, pianos em várias salas, mesas redondas e quadradas, quadros com giz, livros, espaços ao ar livre, uma sala com segredos onde se ensina Filosofia e História, uma biblioteca com um piano de cauda. Tem um cão que se chama Grão, peixes, pássaros e coelhos. Tem flores nos pátios. Uma sala onde se toca jazz. Segue um modelo que não é de uma escola, segue o modelo de oficinas. Tem regras, mas apenas normas que se destinam a desaparecer porque só essas, entendem, é que fazem sentido. Tem regularmente espectáculos na agenda e um plano de estudos que permite ensinar música a alunos mais velhos.
Na sala de Matemática, a professora Maria João, Jonita como é tratada por todos, escreve no quadro com giz. Ao lado, há um papel que explica o processo de fabrico das lousas escolares. As quatro alunas tentam perceber a lição. "O segmento de recta não é a mesma coisa que o comprimento de um segmento de recta", avisa a professora.
Uma hora em silêncio
Depois do almoço, há a hora do ermita. Uma hora em que cada um faz o que quer em silêncio. Os mais pequenos, de 3 e 4 anos, ainda não participam. Ísis aproveitou a sua hora para "fazer um desenho e brincar com o coelho". "Na hora do ermita, fazemos o que queremos, mas em silêncio", afirma. O que é ser um gambozino? Sofia, ou melhor, Cereja, como foi baptizada, tem 6 anos e a resposta na ponta da língua. "É ser boa pessoa", responde. Gosta de Matemática e de Inglês e aproveita a hora do ermita para fazer o que lhe apetece, como mandam as regras. "Às vezes, brinco, outras vezes faço desenhos e, às vezes, ajudo a Lurdecas na cozinha."
Luís Miranda tem 10 anos, está na Escola dos Gambozinos há cinco. Guitarra ao ombro, espera pela aula de instrumento. "Ser gambozino é ter bom sentido de humor e gostar de arte", garante. Gosta de tocar guitarra e de desenhar, embora admita que a expressão plástica não seja o seu forte. E adora Filosofia. Alguma aula especial? É difícil escolher, mas Luís não esquece quando discutiram "porque é que os adultos têm mais medo de errar do que as crianças?". Há resposta para a pergunta? "Os adultos têm mais medo de errar... depende do ponto de vista". Quando for grande, Luís quer ser escritor ou cantor. Ainda não sabe muito bem. Rui Pereira, professor de xadrez e de Filosofia, explica a lógica da hora do ermita. "É das coisas mais importantes. É uma forma de estarem acompanhados por si mesmos, o que é extremamente difícil. É aprenderem a estar sozinhos, o que é absolutamente fundamental."
Os pais das crianças inscrevem os filhos numa escola pública em regime doméstico. A Escola dos Gambozinos só aceita 50 alunos, no máximo. Não é feita qualquer selecção artística à entrada. "A diferença torna-se complementaridade". As crianças entram e no final de cada ciclo vão à escola pública fazer os respectivos exames. Das 9:00 às 16:00, o programa inclui as disciplinas do ensino regular, mais Filosofia, e várias expressões artísticas. Música, dança, piano, guitarra, expressão plástica. Tudo começou há alguns anos com uma hora e meia depois das aulas. E se era possível fazer muita coisa nesse tempo, o que daria para realizar se o horário fosse alargado e a organização repensada. "A música era um pretexto para se fazerem outras aprendizagens", diz Rui Pereira. Hoje, todas as terças-feiras depois das aulas, os professores juntam-se para conversar, partilhar pontos de vista, analisar estratégias, criar e sugerir.
Maria João, Jonita, veio directamente do Ensino Superior para a Escola dos Gambozinos. Os filhos estavam na música e a professora de Matemática ficava encantada com o material colorido sobre a disciplina dos números que via colado às paredes das salas. Falou com a Direcção e começou por orientar actividades de Matemática durante hora e meia, todas as quintas-feiras. Neste momento, é professora "residente". "É um desafio lidar com estas idades." Sete é o número máximo de alunos que tem numa sala e isso permite-lhe pegar no grupo e levá-lo para a rua ou para um jardim, quando quer explicar a matéria com exemplos mais práticos.
Desconstruir lugares-comuns
O lema dos Gambozinos é uma frase de Regina Guimarães. "Tantas maneiras de ver e viver." "E as crianças percebem isso melhor do que nós", assegura Rui Pereira. Neste momento, os Gambozinos andam envolvidos no projecto "A Terra é um condomínio". É o tema anual. E mergulhados na realização de um filme, que envolve a Área de Projecto e a Filosofia. "A pobreza é uma violação dos direitos humanos" é o ponto de partida. "Vamos filmar a pobreza de espírito." Há três perguntas a que os alunos terão de responder perante as câmaras. De que maneira é que se é pobre? O que ser pobre faz ser a quem o é? De que maneira é que nós sendo pobres somos pobres também? Pretende-se pluralidade de visões e desconstrução de lugares-comuns.
Os alunos saem dos Gambozinos e vão para o ensino regular. "Geralmente são bem-sucedidos. A exigência técnica nesta escola é muito elevada", sublinha Rui Pereira. Uma das dificuldades poderá ser a dimensão do grupo que estica fora dos Gambozinos, que só funciona em pequena escala. De qualquer forma, a ligação à escola pública é incentivada, há iniciativas em comum e os Gambozinos fazem questão de se misturarem com a sociedade. Não poderia ser de outra forma.
A associação cultural que conduz a Escola dos Gambozinos nasceu em 1975. Manuel António Pina, jornalista e escritor, ajudou ao seu nascimento e ainda hoje é um dos principais consultores da associação sem fins lucrativos. A actividade tem sido intensa: mais de 10 álbuns gravados. O primeiro, chamado "Berlindes", foi gravado em 1983 e contou com a participação de Sérgio Godinho. Mas houve muitos outros. José Mário Branco, Amélia Muge, Pedro Burmester, Fausto Neves também por ali passaram e deixaram a sua marca. As fotos a preto e branco presentes em várias salas ajudam a contar a história dos Gambozinos.
Por: Sara R. Oliveira