Foi em setembro que te conheci...
Era professora de Português e de Francês do ensino regular. Nesse ano, foram-me atribuídos todos os 7.º anos de Francês iniciação.
Entrei na sala para a habitual apresentação aos alunos, quando me deparei com um aluno "diferente" a correr tropegamente em minha direção de braços abertos emitindo um som estridente.
Lembro-me como se fosse hoje... Assustei-me contigo, André! Julguei, ignorantemente, que me irias fazer mal... foi tudo tão estranho! E com a tua alegria, com a tua espontaneidade passaste a aula a abraçar-me e eu estranhamente a afastar-me.
Sabes porquê, André? Porque nunca tinha conhecido um aluno com síndrome de Down. Em todo o meu percurso escolar, nunca convivi com uma criança especial. Não me lembro de, enquanto estudante, conhecer esta realidade, simplesmente porque não era frequente a vossa inclusão numa escola do ensino regular. Enquanto estudante, na Universidade no curso via ensino, nunca fui preparada para este tipo de alunos. Fui "formatada" para os alunos ditos normais.
Quando via meninos como tu na rua, tentava não olhar, incomodavam-me. Hoje é com a consciência envergonhada que me penalizo por viver tantos anos na ignorância de vos conhecer. Julgo, também, que esta minha atitude perante a diferença foi fruto de um sistema que até há bem pouco tempo vos mantinha afastados das escolas, remetendo-vos à invisibilidade dos outros.
Compreendes agora, André, a minha insegurança? A insegurança da diferença entre iguais?
Tive muitas dúvidas... para além da estranheza imbuída numa mistura do medo e da apreensão, como iria eu, numa turma do ensino regular, saber trabalhar contigo? Como iria eu trabalhar contigo uma língua estrangeira?! Mal te expressavas em português, devido às tuas ecolalias, quanto mais francês!
Não foi fácil, mas deixei-me levar pela minha intuição e predispus-me a aprender contigo. Deixei de lado o preconceito, coloquei-me no lugar dos teus pais e inverti a situação colocando-me a questão: "E se fosse o meu filho?" Refleti e... abri-te o meu coração.
É curioso como este simples exercício de nos colocarmos no lugar de outro nos pode ajudar a moldar a nossa tolerância. Foi por aqui que evoluí, foi por aqui que sensibilizei a turma para a tua aceitação, para a ajuda mútua, para não se rirem sempre que falavas, para participarem na tua evolução e sobretudo para a predisposição de aprenderem contigo.
Tinhas tanto para nos ensinar e ensinaste-nos tanto, André! Só te posso dizer que passados quinze dias me apaixonei por ti. Apaixonei-me pela tua pureza, pela tua essência e pela tua inocência.
Aprendias tão, mas tão devagarinho, André. E sabes porquê? Porque uma das tuas características (frequente em meninos como tu) é a microcefalia, que reduz o peso e o tamanho do teu cérebro e assim compromete seriamente a tua aprendizagem. Contudo, à medida que o tempo avançava, cada tua pequena conquista era motivo de grande celebração entre nós. Contagiaste-nos a todos, André! Como eram saborosas aquelas aulas!
Afinal foi tudo tão fácil... achavas piada àquelas palavras novas de iniciação e tentavas repeti-las. Provavelmente achavas que era um "jogo" novo, diferente daqueles a que estavas habituado. Provavelmente, deixaste-te contagiar pela sua sonoridade e lá estavas tu, repetindo alegremente: "Oui, oui, merci, bonjour..." a todos e em qualquer contexto. Eras tão engraçado, era impossível resistir-te!
A vida para ti e para a maior parte dos meninos como tu (para mim, nunca deixarão de ser meninos!) é feita de cor, de música, de sons que se traduzem numa felicidade contagiante. Nunca te vi triste, simplesmente porque no teu "mundo" este estado de espírito não existe. És como a Natureza, és perfeito, nasceste para encantar.
Como já o disse, "apaixonei-me" por ti. E o sentimento era mútuo, quando me vias corrias ao meu encontro e lá íamos nós, de mãos dadas pela escola fora.
Sempre achei muita graça aos olhares surpresos de alunos, professores e auxiliares quando nos viam - se eu não te tivesse conhecido, um desses "olhares" seriam certamente os meus!
Não era uma prática habitual ver uma professora de mãos dadas com um aluno... com um aluno especial... com um aluno que não contribui para os rankings escolares...
Levava-te frequentemente à sala dos professores. Quando nos viam, instalava-se "aquele silêncio" e aqueles "olhares estrábicos". Para alguns era mesmo constrangedor, todavia, aos poucos, "muito devagarinho", começaram a habituar-se àquela cumplicidade. Eu queria muito, que o mundo te olhasse de forma igual.
E com esta minha prática, os alunos, sobretudo os mais pequenos começaram a imitar-me e de repente, André, com os teus olhos amendoados, os teus dedos curtinhos, as tuas pálpebras tão peculiares, o teu narizito achatado e o teu pescoço curtinho, transformaste-te numa Pessoa próxima "do igual".
Foste a minha primeira Tulipa, André. Sabes? Eu adoro tulipas, porque é uma flor que me encanta pela sua fragilidade, pela sua beleza e pela sua pureza! Vocês têm tanto em comum. Tal como vocês - embora por razões diferentes - elas dividiram mundos!
Ensinaste-me, André, que, afinal, é tão possível aceder ao teu mundo, ao vosso mundo. A porta está sempre aberta para cada um de nós. Nunca me deram "a chave" para lá entrar, até perceber que a tal "chave" é só mais um artefacto criado pela mente humana perante a diferença.
Foi contigo, André, que entrei e me deslumbrei com o vosso mundo, um mundo composto por um vasto jardim multicolor, onde cada cor corresponde a cada uma das assoalhadas do teu/vosso interior: amarelo, azul, verde, vermelho, laranja, rosa e violeta. Cada ato vosso corresponde a uma destas cores e cada uma delas a um sentimento. É um mundo simples, onde não cabem nuances, onde não cabem os "Blancs" de Proust, onde não cabem as entrelinhas.
Tive coragem e entrei. Foi contigo, André, que percorri todas as assoalhadas. Comecei pela amarela onde me deste a tua amizade, depois pela azul onde me demonstraste a imensidão do mar e a tranquilidade do céu, seguiu-se a vermelha onde me ensinaste a amar incondicionalmente, a laranja onde descobri a força da tua existência, a verde porque me deste esperança e confiança para continuar a minha viagem, a rosa onde me ensinaste a ternura e finalmente a violeta onde encontrei a paz para abraçar a Educação Especial.
Por: Manuela Cunha Pereira
In: Educare
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