sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Doença dos pezinhos. A vida por um comprimido

Doentes adiaram transplante com a promessa de um medicamento que já existe, mas que os hospitais não pedem

Marta já só está à espera que o telefone toque. Acontece-lhe todos os dias: uma chamada de um número desconhecido, o coração dispara, falso alarme. Fica ansiosa, mas ao mesmo tempo quer acabar com a incerteza, com a espera, poder sair do Porto, dar um irmão ao filho de oito anos. Há oito meses, depois de ano e meio à espera de um novo medicamento que a poderia livrar do transplante – e travar a doença familiar que lhe levou a mãe, cinco tias e quatro primos – decidiu voltar para a lista de transplantes hepáticos no Hospital de Santo António. É a próxima, logo que surja um dador compatível.

Às vezes, confessa, dizem que é fria. Mas Marta fala com uma certeza que não se desmonta. “Digo que prefiro morrer no transplante a ver-me doente. Prefiro morrer e que as pessoas me vejam conforme estou a verem-me como uma pessoa completamente degradada.” Aos 18 pegava na mãe ao colo, do carro para o hospital, depois numa tia. Às vezes sujavam-se as duas e tinham de trocar de roupa numa casa de banho. A morte era normal: “A tia está a assim e daqui por um mês ou dois vai morrer, não tem cura”, ouvia. Dentro do normal que começaram também a ser os funerais, os mais dolorosos foram o da mãe e o de um primo, que sobreviveu cinco anos ao transplante.

É porque recusa com todas as forças que ainda tem hoje, aos 37 anos, ficar assim doente – usar fralda, não conseguir andar – que para Marta foi fácil, dentro do difícil, resolver o dilema em que neste momento viverão cerca de 100 doentes diagnosticados com paramiloidose no país, nos primeiros anos de sintomas: avançar para um transplante ou esperar mais um pouco até que um medicamento que lhes prometeram como alternativa, e que já está disponível, lhes seja dado. O problema é que o pouco que em 2009 já era um pouco, em Junho eram mais dois meses e agora deixou de ter data para chegar.


Uma doença portuguesa A doença dos pezinhos ou paramiloidose (nome técnico Polineuropatia Amiloidótica Familiar, PAF) é uma doença neurológica degenerativa e hereditária, descoberta em Portugal em 1939. Tem no país uma das maiores incidências do mundo. Desde 2005, um medicamento em ensaios clínicos prometeu ser a primeira alternativa ao transplante hepático e desde 2009, comprovada a eficácia e a segurança, pode ser pedido pelos hospitais num regime de Autorização de Utilização Especial (AUE), algo que até hoje nunca aconteceu em Portugal.

Na Europa, há ao todo 120 doentes a tomar o Tafamidis, através de programas de acesso especial, como as AUE, e em ensaios clínicos, confirmou ao i a Pfizer, responsável pelo medicamento. Mas em Portugal só estão a tomá-lo 47 doentes que participaram nos ensaios e ajudaram a concluir que, em pelo menos 60% dos casos, o medicamento atrasa a doença nos primeiros anos de sintomas, um efeito semelhante ao do transplante e com menos efeitos colaterais.

É porque foi testado para os primeiros anos de sintomas que a Associação Portuguesa de Paramiloidose fala de 100 doentes à espera do medicamento, aqueles em que a doença começou a manifestar-se há menos tempo. Marta é um deles e nunca soube que já podia efectivamente estar a tomá-lo, só que seria “bom” para ela que esperasse, disse-lhe a médica. Esperou até sentir que a doença estava a avançar de mais, e que seria melhor travá-la antes com o transplante. Contra todas as probabilidades: os quatro primos, na casa dos 30 anos, morreram pouco depois da operação.

Na paramiloidose, os sintomas, como formigueiros, dores musculares, perda de apetite, diarreias, evoluem de forma irreversível. Com o transplante ou com o medicamento há hipótese de estagnarem, atrasando os quadros mais graves, que a maioria dos doentes da geração anterior não puderam contornar. Os hospitais do Serviço Nacional de Saúde, como é o caso do Hospital de Santo António, onde Marta Gonçalves é seguida – na Unidade Clínica de Paramiloidose, dirigida pela médica Teresa Coelho – têm neste momento autonomia para pedir ao Infarmed uma AUE para darem o medicamento aos doentes com indicação clínica. A resposta, mediante fundamentação clínica, é geralmente positiva e demora dez dias. Mas é contabilístico: nesta fase de autorização especial, como não há comparticipação, as unidades têm de pagar a factura sozinhas, num valor de 135 mil euros por doente/ano, confirmou o i.

Até quando? Até ao momento não houve nenhum pedido ao Infarmed de AUE para o Tafamidis, nem deste nem de outro hospital, confirmou fonte oficial ao i. A explicação será a falta de verbas para pagar, sem reembolso, todos os tratamentos, embora nem o Hospital de Santo António nem Teresa Coelho façam declarações. O i questionou também o Ministério da Saúde, que vai averiguar porque não houve nenhum pedido de AUE, se são as razões financeiras a travar a dispensa deste medicamento para os casos com indicação clínica. Não houve resposta oficial até ao fecho desta edição.

Bruxelas A espera que Marta entende estar a ser pela possibilidade de prescrever o medicamento em Portugal poderá ser, em última instância, a espera pela comparticipação. Se assim se for, ainda será longa. Por se tratar de um medicamento para uma doença rara (designado “medicamento órfão”), o pedido de introdução no mercado está a ser centralizado a nível europeu, mas fonte de Bruxelas adiantou ao i que o processo deverá estar concluído no final do mês. Mirjam Soderholm, responsável da Comissão Europeia por esta área, respondeu ao i que o Comité de Medicamentos para Uso Humano adoptou uma opinião positiva sobre o medicamento a 21 de Julho, recomendando que fosse autorizada a comercialização do Tafamidis para o tratamento da polineuropatia sintomática em adultos no estádio 1. A CE está definir critérios de administração, que deverão ser revistos todos anos.

Depois será preciso que o laboratório inicie em cada país o processo de autorização de preço e pedido de avaliação económica e comparticipação. Em Portugal, o primeiro processo está dependente da Direcção-Geral das Actividades Económicas e o segundo do Infarmed, que estipula um prazo de 60 a 210 dias. Tudo somado, pode significar pelo menos mais um ano à espera.

Se dois anos já foram muito tempo, mais um pode ser tempo de mais. Lígia Morgado, por exemplo, só está disposta a esperar até ao final do ano. Soube aos 18 anos que era portadora de paramiloidose e os primeiros sintomas chegaram aos 36. Perdeu o tio, a tia, a mãe. Hoje, com 39 anos, os sentimentos misturam--se: “Nunca sofri por antecipação. Quando chegasse a minha vez é que iria ver, achava que a medicina iria ter uma solução melhor.”

Em Setembro de 2008, Lígia foi fazer a biopsia à glândula salivar do lábio, o método usado para perceber se a doença já se está a manifestar – ou seja, se a substância designada amilóide (subunidades de uma proteína do sangue que transporta hormonas da tiróide e vitamina A) já se está a depositar nos tecidos, fruto de mutações no gene TTR. “Em Janeiro de 2009 inscrevi-me para transplante no Curry Cabral. Sabia que tinha dois anos para esperar.” Então, a meio de 2009, começou a ouvir falar do Tafamidis. “Comecei a falar com a médica, que me disse que fazia o mesmo que o transplante e que seria bom para mim.”

A Lígia foi dito que estaria entre os 100 doentes na fase ideal para tomar a medicação. Por isso desistiu do transplante quando soube que “era a próxima”, há ano e meio. “Pus a questão de suspender o transplante à médica [também Teresa Coelho, do Santo António] e ela disse que sim: no estado em que estava, era capaz de aguentar até ver se o medicamento saía. Não deu nenhuma data, mas sabíamos que era burocracia que estava em falta e achei que dali a um ano já haveria resposta.” O prazo venceu há meio ano. Retomou as consultas no Curry Cabral, mas ainda não decidiu voltar para a lista.

“Não estou arrependida. Continuo com vontade de esperar que a decisão saia e continuo à espera que o comprimido venha o quanto antes. Mas tem de ser este ano. Sei que no próximo ano posso deixar de andar se os sintomas avançarem”, diz Lígia. A determinação esbarra na incerteza, mesmo na da médica que lhe falou do medicamento. “Quando foi o Dia Nacional da Paramiloidose (16 de Junho) disse que já não sabia o que nos havia de dizer.” Em declarações públicas, Teresa Coelho afirmou que em dois meses o medicamento deveria estar disponível. Passaram quatro.

A reunião em Lisboa Nas últimas semanas, um grupo de doentes mobilizou-se para pedir respostas sobre o atraso na prescrição do medicamento. Uma petição com 9404 assinaturas está a ser analisada no parlamento. Um grupo no Facebook junta já mais de 1500 doentes e amigos. A 17 de Outubro, alguns conseguiram uma audiência com o secretário de Estado da Saúde, Manuel Teixeira. Lígia participou na reunião, em Lisboa. “Levámos estudos, confirmados pelo vice-presidente do Infarmed, que também esteve presente, e eles não tomaram nenhuma decisão. Só dizerem ‘não venham aqui fazer pressão, porque nós não decidimos nada...’ Quem decide então?” Lígia garante que a expectativa nasceu nas consultas, foi crescendo, mas partiu de informação clínica. Se não, já teria feito o transplante. Em Abril participou no ensaio clínico de uma futura terapia genética, para corrigir a mutação que desencadeia a doença. Teme que esse tratamento inovador, se for para a frente, passe pelas mesmas burocracias. “Sempre achei que era muito mais difícil encontrar uma cura do que assinar papéis.” O Tafamidis não é a cura, mas promete livrá--los da intervenção cirúrgica, dos imunossupressores, do risco acrescido de morte. Pesar tudo é difícil. “Todos os dias penso no mesmo: será que estou a fazer uma boa escolha ao esperar? E se vou para transplante e no dia seguinte há o comprimido? Mais dia menos dia virá, mas será que vem para mim?”

A solução nem sempre é racional, mostra Marta. “É revoltante saber que se o tomasse ia ficar bem. Mas agora estou assim: seja o que Deus quiser. Se vier o medicamento e ainda não tiver feito o transplante, paro Se me chamarem vou.”

Sem comentários:

Enviar um comentário