A republicação de um documento orientador para uma alegada indispensável Reforma do Estado trouxe, sem que se tivesse verificado qualquer alteração significativa em relação à versão original, de novo para a discussão pública questões relacionadas com a gestão financeira da rede de ensino e algumas das opções relacionadas com o tema da “liberdade de escolha” em Educação.
O guião em causa padece das omissões, equívocos e mistificações que se tornaram comuns neste tipo de documentos com origem no Governo, em agências ou organizações que surgem a fazer propostas em seu nome, sejam consultores privados, sejam “especialistas” do FMI. Como me parece ser já pacífico que estes “estudos” se destinam a cumprir uma agenda política que resulta dos poucos compromissos pré-eleitorais que o Governo parece interessado em manter, concentrar-me-ei apenas em dois pontos que julgo fundamentais e que revelam até que ponto pode ir a tentativa de mistificação da opinião pública e quais são as efectivas prioridades da governação em funções, deixando de lado aspectos como a desmontagem das reais motivações da defesa de uma municipalização alargada do sector ou o vazio real da proposta relativa às escolas independente.
Avancemos logo até à página 60 do documento “Um Estado Melhor” e à passagem em que se justifica a necessidade de alargar os contratos de associação com operadores privados, num momento em que a rede pública está a ser sujeita a um nível enorme de cortes, com o seguinte argumento atribuído quase a um senso comum: “como é sabido, os rankings educativos têm revelado a importância destes contratos”.
Ora bem… se há coisa que os rankings têm revelado é que as escolas com contrato de associação e que, mesmo que com alguns artifícios e atalhos à mistura na selecção e avaliação dos alunos, têm de seguir regras próximas das escolas da rede pública tradicional, demonstram bastante dificuldade em destacar-se em termos de resultados comparativamente às escolas públicas com melhor desempenho. O que os “rankings educativos” provam é que as escolas privadas de topo, com acesso restrito através de práticas de forte selectividade nas matrículas, praticando um evidente skimming educacional e um modelo de gestão não permitido às escolas públicas, têm bons resultados. É objectivamente falso que as escolas com contrato de associação dominem osrankings e quem escreve “como é sabido” neste documento com chancela do “Governo de Portugal” sabe que isso é mentira, pelo que não se trata de incompetência mas de desonestidade pura e dura.
Mas existe algo que considero bem mais grave e que é a absoluta incoerência em relação à forma de aplicação dos dinheiros do Estado, defendendo-se a existência de cheques-ensino em nome de uma teórica “liberdade” quando se defendem outros princípios, antagónicos, em relação a outros aspectos da vida em sociedade.
Lá por fora, por exemplo, nos EUA. é notória a coincidência entre os pro choice em Educação (e Economia) e os no choice em tudo o mais. Por exemplo, o essencial do grande lobby friedmaniano a favor do cheque para escolher a escola da sua fé e credo é absolutamente contra o apoio do tipo cheque-alimentar para os mais desfavorecidos da sociedade, porque diz que eles assim se habituam e ficam uns parasitas sociais.
Por cá, existe algo parecido. Basta repararmos que a mesma gente que nega o subsídio de desemprego ou abono de família ou os reduzem gradualmente até à extinção, assim como critica todo o tipo de suporte financeiro do género rendimento mínimo – a que poderíamos chamar legitimamente cheque-vida ou cheque-sobrevivência – é quem defende que seja dado um cheque-ensino a quem dele só tem necessidade em muitos casos para alimentar o seu estatuto “diferenciado”.
A verdade é que quem nega cerca de 300 euros para a sobrevivência de uma família com os pais e um filho ou pouco mais de 400 euros para uma família com pais e três filhos é em tantas situações quem quer esse valor para pagar o convívio social e heráldico da sua própria e desafogada descendência.
Ou seja, quase todo o CDS, uma parte significativa do PSD e outra eventualmente menor e menos explícita do PS. É mesmo muita gente e provoca uma enorme dose social de hipocrisia. Porque estas pessoas são pro choice e a favor da “liberdade” e do “cheque” do Estado quando se aplica aos seus gostos e diletâncias, mas nega-a a quem precisa de tal para satisfazer as necessidades básicas de sobrevivência.
Será que os defensores da liberdade em Educação no actual Governo e em seu redor não são rigorosamente os mesmos que determinam que: “O acesso à prestação RSI está dependente de o valor do património mobiliário e o valor dos bens móveis sujeitos a registo, do requerente e do seu agregado familiar, não serem, cada um deles, superior a 60 vezes o valor do indexante de apoios sociais. (€ 25.153,20).”
Não são as mesmas pessoas que entram pelo discurso do “parasitismo social” a quem necessita dos apoios sociais do Estado e chegam a fazer acusações e nem sequer se preocuparem em procurar um emprego? Para quando a aplicação dessa lógica às suas próprias vidas? Se têm meios e querem uma educação diferenciada porque não pagá-la em vez de pedirem um cheque ao Estado que tanto afirmam abominar?
Mas que raio de “liberalismo” é este?
Será que um cheque destinado a assegurar a sobrevivência material de muitas famílias não deveria ser uma prioridade muito mais importante do que um cheque para pagar os bibes e batas das bibás?
Por: PAULO GUINOTE
In: Público
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