Há meses que cerca de 220 mil crianças se preparam para as provas de segunda e quarta-feira, com uma intensidade que não agrada a todos. Professores defendem que os exames obrigam a pôr de lado conteúdos e actividades importantes para a formação integral dos alunos.
Quando o irmão o desafiou para fazer pulseiras de elásticos para vender “às miúdas”, Filipe, de Vila Nova de Gaia, nem lhe deu hipóteses de explicar a ideia de negócio: “Depois vemos. Antes dos exames não posso pensar nisso”. E Rita, que vive em Leira, está ansiosa por fazer as provas para poder sair com os amigos, algo impossível para quem, além das aulas, tem seis horas semanais de explicações de Português e de Matemática, para além de aulas de apoio, para se preparar para as provas. Ele tem 9 anos, ela 12. São duas das cerca de 220 mil crianças que há meses estão a ser preparadas para os exames do 4º e do 6º anos. Ou “treinadas”, como preferem dizer alguns.
A operação envolve uma logística pesada. A concentração dos alunos do 4º ano na escola sede dos agrupamentos mantém-se e isso significa que segunda-feira, antes das 9h, a maior parte das 110 mil crianças que estão a acabar o 1º ciclo serão transportadas em autocarros das autarquias para fazer o seu primeiro exame. À tarde, os colegas do 6º (outros 110 mil, segundo o Ministério da Educação e Ciência) tomam os seus lugares nas mesmas nas salas para fazerem, também, as suas primeiras provas nacionais, de Português. E quarta-feira o esquema repete-se, para as provas de Matemática.
A necessidade de libertar salas, de garantir o silêncio nas zonas das provas e de assegurar a disponibilidade dos professores vigilantes levou, mais uma vez, os directores a fecharem as portas de muitas das escolas aos 5.º, 7.º, 8.º e 9.º anos. Desta vez, porém, a polémica promete prolongar-se até ao último minuto, já que nesta sexta o MEC exigiu aos directores que obtivessem a autorização formal das associações de pais para interromper as actividades lectivas. A medida foi entendida como “chantagem” por parte da dirigente da Confederação Nacional de Pais e Encarregados de Educação (CNIPE), Isabel Gregório; e considerada “lamentável” pelo presidente da Associação Nacional de Agrupamentos e Escolas Públicas (ANDAEP), que na tarde do último dia útil antes dos exames perguntava: “E se os pais não autorizarem? Cancelam-se as provas?”
Quer Filinto Lima quer Manuel Pereira, presidente da Associação Nacional de Dirigentes Escolares (ANDE), acreditam que nesta segunda e quarta, com ou sem parecer favorável dos pais, as escolas que têm de interromper actividades o farão, pelo que, “naturalmente”, os exames se vão realizar.
Seja como for, para as crianças, umas com 9 ou 10 anos e outras com 11 ou 12, esta segunda -feira não deixará de ser um dia de ansiedade. Agravada para os mais novinhos, que vêem o peso do exame na nota final saltar dos 25 para os 30 por cento, mas suavizada este ano, esperam os directores, pelas estratégias adoptadas desde Setembro para evitar as manifestações de stress que há um ano incluíram dores de barriga, febres e vómitos.
“Tem havido uma preparação importante para que tudo corra bem”, aponta Filinto Lima. Na sua escola de Filinto Lima, por exemplo, os alunos mais novos já foram conhecer o espaço onde vão fazer exame e tiveram uma aula com um professor do 5.º ano. Na de Manuel Pereira tiveram oportunidade de se espantar com os testes “com muitas páginas”, como os do exame, e de descobrirem que apesar disso conseguem fazê-los.
Os alunos do 6º ano serão mais maduros, notam os directores, mas enfrentam uma dificuldade acrescida, em relação aos colegas que fizeram a mesma prova nos últimos dois anos. Desta vez, os exames não se realizam depois de as aulas acabarem e os alunos não dispõem de uns dias de pausa para as revisões. Foram antecipados para Maio, para permitir que também eles beneficiem de uma medida de combate ao insucesso já aplicada pelo MEC aos do 4º ano – uma fase de “acompanhamento extraordinário,” antes da 2ª fase de exames, para as crianças que não ficarem aprovadas na primeira [ver texto nestas páginas].
Neste caso, também foram introduzidas mudanças, mas de outro género. “Se no 6.º ano o tempo já era pouco para os professores cumprirem as metas e os programas, a tarefa este ano não ficou facilitada”, comenta Manuel Pereira que, como Filinto Lima, admite que a preparação para os exames “acaba por interferir no processo de ensino” dos alunos do 4º e do 6º. “Talvez os exames estejam a fazer a escola mudar”, diz Filinto Lima.
Lurdes Figueiral e Filomena Veiga, dirigentes da Associação de Professores de Matemática (APM) e da de Português (APP), respectivamente, não têm dúvidas de que sim, há mudanças. E consideram-nas negativas, por afectarem o ensino de crianças tão novas, explicam. “Um exame induz, à partida, práticas lectivas que não fazem sentido, especialmente numa fase tão precoce, de preparação e treino para as provas”, critica Lurdes Figueiral. Filomena Veiga tem a mesma opinião e comenta que “a antecipação do exame para Maio obrigou os docentes a deixarem de lado conteúdos, actividades e práticas que contribuem para a formação integral dos alunos”, o que considera “uma aberração”. Ambas dizem que isso se passou no 1º e no 2º ciclos. “De tal forma”, diz Lurdes Figueiral, que “a escola está a transformar-se num centro de treino”. “As crianças deixam de ter tempo para reflectir, para problematizar, para criticar – pode parecer que tanto faz, mas não é assim,”, sublinha a presidente da APM.
Num comunicado divulgado esta sexta-feira, o Ministério da Educação e Ciência nota que “as provas finais permitem verificar quais os conhecimentos consolidados durante os dois primeiros ciclos da escolaridade obrigatória e, ao mesmo tempo, as matérias nas quais os alunos revelam dificuldades”. E justifica: “A generalização da avaliação externa é um dos objetivos inscritos no Programa de Governo. Procura-se assim promover o sucesso dos alunos com base num caminho de maior rigor e exigência, que o Ministério da Educação e Ciência tem vindo a aprofundar”.
João Paulo Silva, que para além de pai do preocupado Filipe, de 9 anos, é professor de Matemática, concorda que algo mudou nas salas de aula, este ano, na sequência dos exames. Tem experiência directa do que se passou no 6º, com o encurtamento do ano lectivo e as exigências da prova nacional. “Quando damos por ela, estamos a subverter prioridades – deixamos de pensar no exame como algo que vem depois da aprendizagem e condicionamos a forma de ensinar às provas nacionais”, diz. Explica que, para cumprir as metas do 6º ano até à data da realização da prova só pôde concentrar-se em dois aspectos: ensinar os conteúdos de forma directa, esquecendo outros métodos didácticos, e treinar os alunos para as questões tipo do exame, nos testes e nas fichas de trabalho.
Acredita que no 1º ciclo as coisas também mudaram. “Pelo menos neste 3º período, o Estudo do Meio e as Expressões foram postos de lado”, diz. Carmen Henriques, professora do 3º ano numa escola de Famalicão, confirma. E lembra que, no caso das crianças mais novas, há também a necessidade de as libertar da ansiedade, o que exigiu outras mudanças.
Segundo conta, no agrupamento em que trabalha os alunos estão desde o início do ano a fazer testes semelhantes a exames, que também deixaram de ser elaborados pelo professor titular da turma e de ser corrigidos por estes. São docentes de outras escolas do agrupamento que fazem aquelas tarefas e que vigiam as provas. O conteúdo também mudou: “Nada de composições de tema livre, isso acabou”, exemplifica Carmen Henriques. Tal como no exame, aos alunos é indicado o tema, as personagens, o local e o momento da acção. Tudo verificável no momento da correcção. Isto, explica, “porque não serve de nada fazerem uma composição muito bonita se não respeitarem os critérios que contam para a atribuição da nota”.
A professora não considera os procedimentos exagerados. “É o preço a pagar para que no dia da prova as crianças não estejam tão ansiosas e para que não cometam erros que podem comprometer os resultados”, diz.
Manuel Pereira e Filinto Lima afirmam que aquele não é um caso isolado, embora o considerem extremo. “Quer se queira quer não, os professores e os próprios agrupamentos sentem que também estão a ser avaliados pelos resultados dos alunos, o que torna a pressão muito grande”, justifica o dirigente da ANDAEP.
Carla Trindade, de Coimbra, que tem a filha, Inês, fazer o 4º ano num colégio privado, é uma das encarregadas de educação que pensam, precisamente, que essa tensão colocada sobre os docentes “é um dos aspectos positivos dos exames”. “A partir do momento em que os resultados podem ser comparados, os professores são obrigados a dar o máximo”, comenta. Acredita que isso contribui para uma “uniformização da qualidade de ensino, a nível nacional”. Também prefere que a filha se enerve, agora, e enfrente os exames com mais naturalidade, quando for mais velha.
Alexandra Barata, mãe de Rita, também não é crítica dos exames, mas considera que a antecipação das provas para Maio, no 6º ano, “perturbou as aulas”. Por constatar que os professores “estavam a dar a matéria numa corrida desenfreada, sem aprofundar nada”, e, também por saber que a filha “tinha lacunas na aprendizagem que não estavam a ser colmatadas”, colocou-a em explicações, a Português e Matemática. Lamenta ter de o fazer: “é uma violência que aos 12 anos uma criança não tenha tempo para brincar”.
In: Público
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