quinta-feira, 8 de abril de 2010

Diário de uma psicóloga escolar

"E como professor é "pau para toda a colher", embora esteja "abaixo de cão", psicólogo parece estar "abaixo de professor". E é assim que já foi sugerido, na televisão, por responsáveis na política educativa, que qualquer professor experiente pode substituir um psicólogo quando ele não existe.

Os dias que correm não são felizes para os professores, que se sentem, com razão, tratados "abaixo de cão". Mas os dias que correm, consequentemente, também não são felizes para a educação. E quando se fala de educação, fala-se de outros profissionais que conseguem ainda, por vezes, ser mais desconsiderados que os docentes. Estou a pensar em profissionais que (quase) não existem nas escolas e vêem as suas funções desempenhadas por professores ou... por ninguém. E como professor é "pau para toda a colher", embora esteja "abaixo de cão", psicólogo parece estar "abaixo de professor". E é assim que já foi sugerido, na televisão, por responsáveis na política educativa, que qualquer professor experiente pode substituir um psicólogo quando ele não existe.

Serão tão irrelevantes as funções de um psicólogo escolar ou tão simples de serem assumidas por pessoas sem a formação adequada? Acompanhemos uma psicóloga num dia de trabalho no agrupamento em que está colocada.

- 09h00 - Escola EB 2/3 - Atendimento de um aluno de 16 anos a frequentar o 6.º ano. Família desestruturada, governa o seu quotidiano em completa autogestão, desde a decisão sobre o que comer ao longo do dia, passando pelo local onde irá angariar umas moedinhas à noite, arrumando carros, até à hora em que deve regressar a casa para dormir.

- 09h40 - Atendimento de uma encarregada de educação, cuja filha, frequentando o 8.º ano, tem problemas de integração na turma e na escola e é alvo de bullying.

- 10h00 - Pequena pausa (?) para um café, no bufete da escola. O café acaba por arrefecer, tantas são as solicitações dos professores que querem pedir "dicas" sobre formas de actuação com alunos/turmas com os mais variados problemas.

- 10h10 - Partida da Escola EB 2/3, rumo a uma das escolas do 1.º ciclo do agrupamento para, em conjunto com a professora de uma turma, analisar e, provavelmente, reformular o plano de apoio a um aluno com síndroma de Asperger, e para atender e apoiar individualmente esse aluno.

- 11h10 - De novo na Escola EB 2/3. A manhã reparte-se entre mais alguns atendimentos a encarregados de educação e alunos, sempre na angústia de ter de equilibrar o tempo de atendimento desejável com a necessidade de dar resposta ao apoio a um elevado número de alunos. Pelo meio ficam telefonemas diversos para encarregados de educação ou entidades como a Comissão de Protecção de Crianças e Jovens em Risco ou escolas profissionais.

- das 13h00 às 13h30 - Almoço na cantina da escola. Alunos que entram ou saem aproximam-se para contar as suas alegrias ou tristezas do dia ou simplesmente para, a pretexto da confirmação da data do próximo atendimento, poderem receber o afecto que sempre lhes é dispensado.

- 14h00 - Atendimento a um grupo de alunos que, estando fora da idade de frequência obrigatória da escola, estão ainda no 2.º ciclo e continuam desmotivados. Objectivo: criar um espírito de motivação e de entreajuda no grupo para haver assiduidade às aulas e cumprimento de tarefas que possibilitem o seu sucesso académico.

- 14h45 - Reunião com uma directora de turma para definição do plano de abordagem do tema "Educação sexual" na sua turma de 7.º ano.

- 15h15 - Participação na reunião de uma equipa pedagógica do 9.º ano, para definição da intervenção na área da orientação escolar e profissional.

- 16h00 - Reunião com uma assistente social do Instituto de Reinserção Social para fazer o balanço do acompanhamento de um aluno e para redefinir estratégias de intervenção.

- 16h30 - Reunião com uma directora de turma para apoio na elaboração de um plano educativo para um aluno sobredotado, com problemas de integração na turma e desinteresse pelas aulas.

- 17h00 - Hora de saída. A chegada até ao portão faz-se com alguma lentidão, devido aos diversos professores e alunos que, à sua passagem, aproveitam para trocar algumas palavras e pedir alguns conselhos ou sugestões ou, simplesmente, para desabafar.

Terá acabado o dia de trabalho da psicóloga? Claro que não. Onde, ao longo de todas estas horas, coube o estudo do processo da cada aluno atendido? Onde coube a pesquisa para definir formas de intervenção nas variadas situações a que teve que dar resposta? Onde coube a preparação de materiais? Resposta evidente: em casa, nas horas de lazer e, por isso, não remuneradas. Por vezes, há ainda reuniões com conselhos de turma ou com encarregados de educação, às 18h30. Mais lá para diante, no ano lectivo, haverá também o trabalho com cada turma de 9.º ano, com cada aluno individualmente e com os seus encarregados de educação, para o aconselhamento relativamente às escolhas pós-9.º ano. Ficará para mais tarde ainda o apoio na transição dos alunos do 4.º ano para a nova escola. Estas tarefas não implicarão uma redução das exigências nas outras áreas de intervenção, sendo antes um acréscimo de responsabilidades e de trabalho.

Terá um qualquer professor "com muita experiência" tempo, conhecimentos de Psicologia e formação profissional para cumprir as funções de um psicólogo escolar? Parece-me evidente que não.

Haverá exagero na descrição feita neste artigo? Não. Na verdade, todas as semelhanças com a realidade não são coincidência; resultam da minha observação do quotidiano da psicóloga do agrupamento em que está inserida a minha escola."

3 comentários:

  1. Torna-se até dificil comentar este "testemunho", Prof- Nelson! Consigo apenas expressar o meu lamento por este tipo de situações ocorrerem, que além de muito prejudicarem a própria profissional, prejudicam o apoio urgente e tão necessário, que obviamente se impõe nas escolas. Há muito que me parece perfeitamente indispensável a colocção de psicologos nas escolas, ou agrupamentos, consoante as necessidades... com realismo, com verdade, com respeito por quem deles precisa e com respeito por quem escolheu dedicar-se aos outros, por profissão. Claro que há insubstituíveis - os psicologos não podem ser substituídos por professores (e vice-versa também não me parece bom), não se podem misturar "alhos com bogalhos", excepto quando o dinheiro não chega para aquilo que faz falta, porque tem outros "canais" para onde ir, que francamente às vezes me parecem sacos rotos, porque para o essencial nunca há dinheiro e depois tapam-se buracos com medidas mirabolantes.
    Abraço
    Cristina

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  2. Olá outravez... Faltou-me dizer que adoro esta musica de ornatos violeta que aqui se vai ouvindo:)

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  3. Olá Cristina!

    Primeiro devo dizer que já tinha saudades dos seus comentários ;)

    Segundo, concordar plenamente com o que acaba de dizer... Por experiência própria conheço psicólogos que retratam tudo o que este testemunho nos trouxe...Excelentes profissionais, posso dizer que são mesmo um bem essencial para a Escola...Infelizmente na nossa Sociedade ainda há "casos tristes"...

    Grande Abraço
    Eu também adora esta música, já tinha saudades de a ouvir:)

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