Uma escola descentrada da sala de aula, em que os alunos se espalham por espaços informais, com os seus computadores portáteis, cruzando-se com os professores na biblioteca e discutindo projectos - é esta a visão que a Parque Escolar tem para o ensino em Portugal.
Para a entidade pública empresarial que até 2015 vai modernizar 332 estabelecimentos de ensino por todo o país, a escola em que os estudantes não podem estar nos corredores durante os intervalos e em que tudo se centra nas salas de aula nas quais professores em cima de estrados "dão a matéria" a alunos sentados em filas de mesas e cadeiras faz já parte do passado.
A modernização das escolas anunciada pelo Governo de José Sócrates não é apenas um projecto em que as velhas escolas, com a pintura a cair e janelas que não fecham, passam a ter um novo rosto. A ideia é aproveitar as obras - e o ano escolar que agora termina foi de esforço para as escolas, obrigadas a trabalhar no meio de máquinas, e poeira - para modernizar também a concepção do ensino.
Para lá das polémicas que têm rodeado o projecto, lançado em 2007, (o sistema de ajuste directo de projectos criou mal-estar entre os arquitectos e levantaram-se dúvidas sobre as intervenções, sobretudo nos liceus históricos) a ideia é aproveitar as obras para modernizar também a concepção do ensino. Mas as novas ideias vão ter que caber em fatos antigos - não estão a ser construídas escolas de raiz; o que se está a fazer é recuperar edifícios, dos chamados "liceus históricos" do princípio do século XX, passando pelos que foram construídos pelo Estado Novo, nos anos 30, 40 e 50, até ao modelo de pavilhões (de baixa qualidade de construção), que se espalhou por todo o país a seguir ao 25 de Abril, com a democratização do ensino. Será o novo modelo compatível com estes antigos espaços?
O PÚBLICO foi ver o que prevê o programa de modernização, que modelo de escola inspira esta iniciativa, e que transformações estão de facto a acontecer nos edifícios. Visitámos cinco escolas e conversámos com a arquitecta Teresa Heitor, vogal do conselho de administração da Parque Escolar, ouvimos arquitectos e professores.
Biblioteca no centro
O ensino está a mudar, diz Teresa Heitor. "Hoje não se centra apenas no ministrar de conhecimento e competências básicas de professor para aluno. Vai mais longe. Há princípios que a escola tenta divulgar que têm a ver com um melhor acesso à informação, uma capacidade para gerir essa informação".
Num modelo muito inspirado em experiências de países como a Finlândia ou a Holanda, a Parque Escolar propõe uma escola com espaços mais informais (é o conceito da learningstreet, ver texto nestas páginas), locais para pequenas exposições de trabalhos e, acima de tudo, uma biblioteca, que passa a assumir um lugar central, com jornais, revistas, computadores, Internet. No caso dos liceus antigos, mantém-se por vezes a biblioteca original como "memória histórica" e espaço mais formal, e cria-se uma nova.
A biblioteca deve ser um "espaço aberto à comunidade": juntas de freguesia ou outras entidades poderão usá-las para iniciativas abertas ao exterior. Os novos pavilhões gimnodesportivos e salas polivalentes podem ser cedidos ou alugados pela escola, que se abre ao bairro e pode ter fontes de rendimento alternativas. "A ideia é levar a escola para fora dos seus limites físicos, trazendo para dentro as pessoas de fora", explica Teresa Heitor. Em muitos casos pretende-se ainda instalar um Centro de Novas Oportunidades.
Tudo isto - acrescido da necessidade de novas salas de aula, novos laboratórios devidamente equipados, espaços para os professores poderem reunir-se e trabalhar (para além da tradicional sala de professores) e espaços para os alunos (nas escolas antigas a "sala de alunos" era o recreio coberto, salas fechadas só surgem nos anos 60) - representa, para os arquitectos a trabalhar nas escolas um desafio complicado.
O programa é pesado e o que se lhes pede é que encontrem espaço nas escolas para o instalar - processo que se torna ainda mais complicado nos edifícios históricos, onde se tem especial cuidado na recuperação do original. As soluções são, obviamente, todas diferentes, mas passam sempre pela construção de área nova (que pode ficar mais ou menos escondida, conforme a opção). Há em média 30 por cento de construção nova, indica a responsável da Parque Escolar.
Mas, ao criar os tais espaços mais informais e ao "descentrar o ensino da sala de aula", não estará a arquitectura a ir à frente do que é a realidade das escolas hoje? No final da década de 60 foi precisamente isso que aconteceu "com o modelo das escolas abertas, em que se rebentava com os limites da sala de aula para criar grandes espaços", recorda Teresa Heitor. Na altura "as pessoas não foram capazes de se adaptar, mas isso foi há 40 anos e hoje há uma evolução do conceito do ensino centrado no aluno para um ensino centrado no trabalho corporativo". Sinal disso é o facto de os velhos estrados que colocavam o professor num plano superior terem desaparecido ao longo do tempo. Nas novas salas pretende-se flexibilidade, para que o professor possa optar por um modelo de arrumação das mesas tradicional, em U, ou outro.
"Tem que servir a vida"
Será este programa ambicioso de mais sobretudo quando é preciso adaptá-lo a edifícios antigos? "A arquitectura está relacionada com a vida, tem que servir a vida, não é a vida que vai servir a arquitectura", defende Michel Toussaint, vice-presidente da secção regional sul da Ordem dos Arquitectos e professor de arquitectura na Universidade Técnica de Lisboa. "A questão patrimonial tem os seus limites, [senão] o edifício transforma-se num museu, ou então abandona-se e vai-se para outro lado. Se estamos perante um conjunto patrimonial, ele tem que ser conservado, sem dúvida, mas a forma de o conservar é também habitá-lo. A arquitectura não tem sentido se não for habitada. As escolas têm que continuar a ser escolas."
Quanto à concepção dos espaços de ensino, Toussaint lembra que um país como a Holanda, por exemplo, "tem uma tradição de experimentalismo na arquitectura, e isso tem muito a ver com a própria sociedade". Em Portugal "há outras tradições de ensino, outras condições financeiras, de organização social, de eficácia administrativa e até de experiência arquitectónica". Pode não ser fácil transferir experiências de outros países.
A Parque Escolar tem noção disso. Muito depende da forma como os professores reagem em cada escola, diz Teresa Heitor. O programa é discutido entre professores e arquitectos, que tentam adaptar o projecto da Parque Escolar às diferentes necessidades. Num processo em que as obras decorrem sem interrupção das aulas, "para a intervenção correr bem é essencial haver estabilidade na escola, além de liderança e capacidade [das direcções escolares] para mostrar que aquilo é para a melhorar."
Há escolas, reconhece Teresa Heitor, que têm maiores preocupações com a disciplina e não reagem tão bem à ideia de ter os alunos a circular pelos corredores durante os intervalos. Outras adaptam-se facilmente aos novos conceitos. Na D. Dinis, em Chelas, onde o arquitecto Ricardo Bak Gordon construiu um novo edifício que funciona como uma learning street, com vários espaços informais, "no primeiro ano os alunos passavam aí a maior parte do tempo", conta o director José António de Sousa. E passaram a ter muito mais cuidado com o equipamento - se antes era preciso limpar com frequência as paredes, isso deixou de acontecer. Poderá a arquitectura levar a um maior civismo?
Sem comentários:
Enviar um comentário