Apresento-vos Yilan, uma doce menina chinesa, a terminar o 5.º ano de escolaridade. Secundada pela turma, pedi-lhe que nos ensinasse algo de chinês na última aula de Formação Cívica. Vi uma sala degradada de paredes sujas e velhas transmutar-se num local mágico, onde uma criança mostrava ser uma professora nata, com uma aula bem estruturada, sem para isso ter tido qualquer ajuda.
Começou por nos ensinar que há mais vogais em chinês do que em português e como se pronunciam. Continuou explicando como se desenham os caracteres chineses: da esquerda para a direita, de cima para baixo e do centro para fora. Associou cada um dos sinais a uma imagem que fizesse perceber melhor como os desenhar ("É como uma gota de chuva. Primeiro mais forte e depois cada vez mais suave."). Escreveu a palavra "amizade", a pedido dos colegas, e explicou-a.
Terminou escrevendo e explicando a simbologia do seu nome: a suavidade e a fluência persistente de um rio, a paz e a harmonia na casa de que a sua mãe tanto gosta. A doçura, o rigor de conceitos e a firmeza de objectivos só podem ser bem o que a mãe sonhou para ela e foram, para todos nós, uma lição ao longo do ano. Na sua aula encantatória, todos nos deixámos emocionar pela arte meticulosa e, simultaneamente, metafórica dos caracteres, pela simbologia da língua chinesa e da forma de a representar por escrito.
O poder das palavras como representação do pensamento surge na obra 1984, de George Orwell, quando Syme, um filólogo, especialista em novilíngua, fala do seu trabalho e do que mais aprecia nele, "a destruição de palavras" (p. 60). Refere que, sendo a grande quebra nos verbos e adjectivos, também desaparecem muitos substantivos, bem como sinónimos e antónimos. Explica a um amigo mais céptico a beleza da novílingua, que, um dia, virá substituir todas as outras: "Não vês que a finalidade da novilíngua é precisamente restringir o campo do pensamento? Acabaremos por fazer com que o crimepensar seja literalmente impossível, pois não haverá ideias para o exprimir. (...) Ano após ano, cada vez menos palavras, e o alcance da consciência cada vez mais limitado." (idem, p. 61) Já "crimepensar" era uma palavra da novilíngua para substituir a expressão de velhilíngua "pensar crime", que significava algo de intolerável: pensar autónoma e criticamente contra a ordem vigente e ditatorial imposta pelo Grande Irmão.
E no mesmo dia em que a doce Yilan me deixava flutuar suavemente nos encantos da língua chinesa, partia José Saramago, cuja consciência do poder da palavra e cuja arte produziram uma obra que tornará impossível que alguma "novilíngua" se sobreponha a qualquer língua do mundo. Senti-me irmanada na orfandade e confortada por ver tantas gerações mostrarem o mesmo sentimento. Soube-me bem ver adolescentes que tinham conhecido Saramago nos bancos da escola falarem dele de lágrimas nos olhos e mostrarem o seu apreço pela leitura e pela literatura.
Na obra de Saramago encontrei uma linguagem e um enredo que me transportavam para mundos ficcionais que ajudavam a analisar e suportar o cinzentismo do presente. Na obra e na vida de Saramago encontrei o exemplo de coragem, verticalidade, espírito crítico, criatividade, trabalho literário coerentemente transgessor, sabiamente inovador que contribuíram no presente e contribuirão no futuro para que algum Grande Irmão não possa ter sucesso. Nos mundos que criou, nas abordagens violadoras do dogmatismo, com que certos textos são frequentemente lidos e reescritos por ele, na imprevisibilidade das suas propostas, na sua linguagem literária, que a transgressão da pontuação e do uso de maiúsculas aproximava à oralidade, residem várias das riquezas com que se tece o monumento literário que nos deixa e que o inscreverá para sempre na História da nossa literatura e do nosso povo.
No seu discurso em Estocolmo, aquando da entrega do prémio Nobel da Literatura (07/10/1998), falando sobre a sua obra Que farei com este livro?, referindo-se a Camões, deixava ecoar uma "pergunta, aquela que importa verdadeiramente, aquela que nunca saberemos se alguma vez chegará a ter resposta suficiente: "Que fareis com este livro?". Humildade orgulhosa, foi essa de levar debaixo do braço uma obra-prima e ver-se injustamente enjeitado pelo mundo. Humildade orgulhosa também, e obstinada, esta de querer saber para que irão servir amanhã os livros que andamos a escrever hoje, e logo duvidar que consigam perdurar longamente (até quando?) as razões tranquilizadoras que acaso nos estejam a ser dadas ou que estejamos a dar a nós próprios. Ninguém melhor se engana que quando consente que o enganem os outros..."
Aprender a ler é aprender a pensar. Ler bons textos ajuda a aprender, a pensar, a alargar horizontes. A escola tem uma responsabilidade grande: é preciso ensinar a ler bem. O sucesso precisa de ser efectivo e não apenas estatístico. Promover um bom ensino é também uma maneira de homenagear um nome maior da nossa literatura que, da escola, pouco pôde usufruir, tendo que estudar de forma autodidacta.
Por fim, uma pergunta que o parafraseia: que faremos com os seus livros? Lê-los-emos, vivê-los-emos, apreciá-los-emos. Conseguirão perdurar? Como poderemos disso ter dúvidas?
Referências bibliográficas:
Orwell, G. (2002). 1984. Porto: Público.
Saramago, J. (1998). "De como a Personagem Foi Mestre e o Autor Seu Aprendiz". Retirado da web, em 20 de Junho de 2010, de:
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