É com um fado e um poema da sua autoria, sobre Jesus, que José Júlio salta para o meio da roda e solta a voz. A sua actuação marca o início de mais uma sessão de musicoterapia na Unidade de Doentes de Evolução Prolongada de Psiquiatria, nos Andrinos, Leiria, onde estão internados os doentes mentais crónicos.
A música é usada como terapia e não como entretenimento, no âmbito de um projecto pioneiro que abrange os doentes mentais crónicos e também os que estão internados por curtos períodos – 18 dias em média – no Serviço de Psiquiatria e Saúde Mental, no 4º piso do Hospital de Santo André (HSA).
O projecto ‘Música com Arte’ resulta de uma parceria entre a Sociedade Artística Musical dos Pousos (SAMP) e o HSA, que envolve músicos e profissionais de saúde.
Os benefícios são claros, com os doentes crónicos a registarem uma evolução notória na comunicação e interacção com os outros. Mesmo com idades e patologias distintas, conseguem estabelecer um vínculo através da música, que lhes permite viajar do universo deles para o universo comunicacional oral, onde estão todos os outros.
"Nas primeiras sessões os doentes estavam irrequietos e levantavam-se com frequência para irem fumar, enquanto agora a adesão é espectacular, estão motivados, concentrados e são participativos", explica Catarina Curado, psicóloga do HSA.
Nos doentes agudos, a música ajuda-os a saírem do marasmo e da monotonia que representa o internamento hospitalar e facilita a sua reabilitação clínica. "Não há actividade humana tão complexa como a música, que aqui é usada como uma ferramenta de trabalho, no sentido em que auxilia quem trabalha com o cérebro", diz Paulo Lameiro, director pedagógico da SAMP, lembrando que já Platão defendia que a música penetra mais fundo na alma humana.
EVOLUÇÃO É AVALIADA
A avaliação da evolução dos doentes mentais abrangidos pelo projecto está a ser feita de uma forma "pormenorizada", para se apurar o seu impacto real, uma vez que até agora apenas há "resultados empíricos", diz António Cabeço. O estudo será apresentado em breve pelo Serviço de Psiquiatria e Saúde Mental do HSA. No próximo dia 12, a musicoterapia será apresentada – num encontro sobre saúde mental – como nova terapia.
SAÚDE COM ARTE
SEM LIMITES
O projecto ‘Saúde com Arte’ integra três programas distintos. Para os doentes crónicos foi criado o ‘100 limites ao som’, com sessões às terças-feiras.
CONSENTIR SOM
O programa ‘Consentir o Som’ é o mais recente e destina-se aos doentes internados no 4.º piso do HSA. Está organizado em duas sessões semanais.
ALEGRAR BEBÉS
O ‘Allegro Pediátrico’ é dedicado às crianças internadas no Serviço de Pediatria do HSA. Tem duas sessões semanais e envolve por ano 2500 doentes.
DISCURSO DIRECTO
"ESTÍMULO DO SOM AJUDA NA RECUPERAÇÃO": António Cabeço Director do Serviço Psiquiatria do HSA
CM – Quais as vantagens da música como forma de terapia?
António Cabeço – O estímulo provocado pelo som é agradável ao ouvido e pode criar uma interferência a nível cerebral que vai provocar ou ajudar na evolução favorável do doente agudo e na sua recuperação clínica.
– Mas é também uma forma de entretenimento?
– A música em ambiente hospitalar não é entretenimento ou diversão, tem de ser interpretada como terapia, em complemento à intervenção psicofarmacológica.
– E para os doentes crónicos?
– Nesses é notória a evolução no comportamento, na assertividade e na atitude perante os outros. Andam mais calmos e consomem menos medicamentos.
O MEU CASO: MÁRCIA FERREIRA
VENCEU A GAGUEZ A CANTAR MÚSICA
Sem saber explicar porquê, de um dia para o outro Márcia Ferreira, de 23 anos, dá por si internada no 4º piso do Hospital de Santo André, onde estão os doentes mentais agudos. "Primeiro deixei de falar, depois comecei a gaguejar e tinha espasmos", conta a jovem, adiantando que os médicos atribuíram esses sintomas a uma sucessão de "medos e ansiedade que causaram uma reacção no cérebro".
Foi internada em finais de Janeiro e a pouco e pouco recuperou a fala, mas começou a gaguejar. "No início, até a cantar se notava a gaguez, mas depois comecei a acompanhar os músicos e a sentir melhoras", conta. Incentivada pela equipa médica, Márcia Ferreira copiou para o telemóvel algumas músicas da sua preferência, que ouvia ao longo do dia, acompanhando os cantores. Ao fim de algum tempo deixou de gaguejar, retomando o seu tom de voz normal.
A música foi o estímulo de que precisava para perder a gaguez e recuperar a fala, por isso só tem "bem a dizer" do programa. "As sessões de musicoterapia foram muito produtivas para mim."
NOTAS
DUAS UNIDADES
O Serviço de Psiquiatria e Saúde Mental cuida de 93 doentes, que estão nos Andrinos (foto) e no 4.º piso do HSA.
HOSPITAL DE FUTURO
O projecto de musicoterapia recebeu o prémio Hospital do Futuro 2008/2009, na categoria Parcerias em Saúde.
CRIANÇAS A SORRIR
As crianças internadas na Pediatria sorriem ao receber a visita dos músicos da SAMP, que cantam e tocam para elas.