No dia das doenças raras, histórias de pessoas que aprenderam a lutar com energia contra doenças de que ninguém ouviu falar.
Um dia Sónia estava arrumar a roupa que já não servia à filha mais nova. Ao lado, João, oito anos, 12 quilos. "Agora só se for para ti", brincou a mãe, com uma depressão crónica que tem tornado tudo mais difícil. O menino olhou para ela e riu-se: "Vejo que estás melhor, até já brincas comigo". Há três anos, a vida desta família deu uma cambalhota, diz o pai Carlos Manuel na sala da casa em Gáfete, perto de Portalegre. Antes, estava tudo bem - a casa dada pelos pais, dois empregos, dois filhos. João, que é ao mesmo tempo o frágil e o forte da família, sempre foi uma criança diferente das outras mas os médicos diziam que não era nada. Aos seis anos, o colesterol a 320 fez disparar os alarmes, mas não houve diagnóstico.
Um dia, ao almoço, Carlos Manuel chegou a casa. A mulher estava nervosa à frente da televisão. Tinha visto uma reportagem sobre uma criança portuguesa diagnosticada com progeria, doença que afecta uma em cada 8 milhões de pessoas e provoca envelhecimento prematuro. Tiveram quase a certeza. Foram a Lisboa ao Hospital Dona Estefânia e voltaram com "as estatísticas" às voltas na cabeça: cada ano de João valia por sete e a sua esperança de vida é de 15.
Estima-se que as doenças raras afectem 600 mil a 800 mil portugueses. No mundo, são conhecidas 7200 e todas as semanas surgem cinco novas. A doença de João é das mais raras mas é conhecida desde o final do século XIX. Ele sabe tudo, até já foi ver imagens de outras crianças na internet, as piores que trazem as lágrimas aos olhos do pai e que a mãe não suporta ver. Na semana passada foi operado aos pés. Tirou o gesso e os ferros na sexta e anda pela sala às turras com a irmã Maria, os dedos engelhados e amarelos de betadine.
"Só ficámos a saber o que eram as doenças raras nos Estados Unidos", conta Sónia. Em seis meses conseguiram uma vaga num ensaio clínico no hospital pediátrico de Boston e João tem ido fazer exames e tratamento de seis em seis meses; a última vez, em Novembro. "São 43 crianças. Ele e outra menina são os que têm tido mais resultados", sussussura a mãe. Não acredita na cura mas sente que está a adiar. "Já me disseram que se não fossem os comprimidos..."
Não têm de pagar pelo tratamento. Mas as contas não param de crescer, com cremes, fraldas, alimentação. Sónia, 37 anos, ficou com 205 euros de uma reforma por invalidez e o pai, a mesma idade, não recebe há quatros meses numa fábrica da zona, fora os subsídios por pagar. "Se ele sai à rua com este fato de treino todos comentam que é o faísca", lamentam o meio pequeno. Não é por não ter dinheiro para comer, é por não ter dinheiro para dar a melhor vida ao filho. "De há três anos para cá temos suportado tudo. Mas não temos ninguém que nos ajude a lidar com isto", diz o pai.
Sozinhos A solidão continua a ser comum para um doente crónico. Carmen Henriques tem 27 anos e só há dois percebeu que não era uma "aberração." Nasceu com nevo melanócitico congénito gigante, uma malformação na pele que lhe cobria o corpo de sinais e pelo. Foi seguida na Estefânia mas os médicos acharam que não deviam remover o nevo quando era pequena. Ainda assim, tiravam alguns sinais. Ela pedia sempre "doutor porque é que não tira logo cinco ou seis?", lembra. O médico dizia, preferes uma cicatriz ou uma pintinha e Carmen retorquia: "Eu não tenho uma pintinha, tenho mil".
"Depois dos 12 anos as operações passaram a ser consideradas estéticas", diz. Com um seguro, encontrou uma médica que se dispôs a chamar tumor benigno aos sinais mais incómodos para conseguir as operações, mesmo que nenhum dos sinais de Carmen tenha degenerado em cancro. O couro cabeludo de Carmen ainda está coberto do nevo. Usa uma prótese desde que o cabelo ficou branco e caiu. "Fui operada pelo Dr. Gentil Martins. Ontem encontrei-o e disse-lhe isto da prótese e ele não sabia que o cabelo caía. Operam-nos e nunca mais nos vêem."
A doença só começou a fazer sentido quando, em 2008, conheceu Rosa, avó de uma criança com a mesma doença. "As coisas não mudaram", conta a fundadora da Associação Nevo Portugal. "Quando a minha neta nasceu deram-na vestida à mãe e ''nevo melanócitico congénito gigante'' escrito num papel." Chegaram a casa e foram procurar na internet, depois foram em busca de um especialista. A criança está a ser vista por um médico francês, às custas da familia, embora haja comparticipação. Para Carmen fazer o mesmo teria de pagar do seu bolso e nem vale a pena lembrar-se do orçamento. Em dois anos, a associação conseguiu encontrar 37 casos em Portugal, completamente perdidos. "Quando era miúda pensava que quando tivesse 20 anos já iria ter ultrapassado isto. Há uns tempos estava na praia e passaram uns miúdos que me chamaram dálmata. Isto não é so estética. Devíamos ter um psicólogo logo nas primeiras operações."
Lara Neves tem uns olhões azuis e uma doença rara com apenas dois casos em Portugal. Chama-se Síndrome da Sinostose Espôndilo-Carpo-Tarsal e é também uma malformação congénita que lhe cola as vértebras. "No raio-x a coluna é um s", conta a mãe, Véronique Neves, de Mira. Tem quatro anos e a altura de uma criança de dois e meio. "Ela não sente, insiste só que é grande. Na escola os outros meninos acham que é pequenina." Veronique é enfermeira e estava sensibilizada para as doenças raras. "Foi uma mutação, não há nada a fazer. Ela faz tudo, vai a natação, parece uma criança saudável. Mas quando crescer pode ficar corcunda." Ana Paula Inácio, de Beja, vive mais angustiada. Em 2008, a vida da sua mãe mudou numa semana. "Ninguém sabia o que era", conta. Maria dos Anjos, então com 64 anos, deixou de conseguir assinar, ganhou medo da água, deixou de se querer levantar da cama. O único resultado estranho nas análises foi o nível de anticorpos antitiroideus no sangue, que seriam a razão de uma inflamação no cérebro diagnosticada como Encefalopatia de Hashimoto, uma doença que afecta uma pessoa num milhão. Desde então, a solução encontrada foi a toma diária de 20 mg de cortisona. "Os médicos excluíram depressão, excluíram outras doenças auto-imunes mas, mesmo assim, nem todos acreditam neste diagnóstico. Só sei que se ela deixar de tomar cortisona pode entrar em coma." Sem lhes contar o que ia fazer, um médico tentou tirar-lhe a cortisona em Agosto e Maria dos Anjos quase perdeu a consciência, testemunha Ana Paula. Outro recusou-se continuar a seguir a mãe depois de Ana Paula, enquanto aguardava a consulta, ter voltado a dar um comprimido por dia à mãe em vez da dose dupla intervalada, quando, passado 24 horas, Maria dos Anjos já mal se aguentava em pé. "Uns médicos dizem para voltar ao patamar anterior da medicação quando alguma coisa corre mal, para este já foi admissível", diz. "Sinto falta de apoio. Corri muitos médicos e sinto sobretudo que faltam médicos a perceber de mais de uma especialidade."
Ana Flora Palminha nunca percebeu nada mas sempre acreditou nos médicos. O filho Ricardo, hoje com 19 anos, foi diagnosticado aos cinco anos com o síndrome Klippel-Trénaunay-Weber, que afecta o sistema vascular. Foi operado às pernas, aos testículos e ao coração. Agora querem tentar outro diagnóstico. "Sinceramente não sei nada, só que ele tem tido muitos problemas. Era umas coisas a seguir as outras: operava-se à perna e descobria-se um sopro no coração", brinca uma mãe mais descansada. A última operação a coluna fez com que o filho chegasse ao metro e oitenta. "Vão aparecendo as coisas e vamos resolvendo. Nunca ninguém me disse ele tem isto e, por isso, o que vai acontecer é isto e aquilo." Ricardo tem pesquisado a doença e já encontrou outro caso, de um rapaz com 13 anos. "A partir de agora não vou ter mais nada. Já dei muito trabalho", faz questão de dizer. "Se acontecer mais alguma coisa também estou pronto para tudo. Uma semana no hospital, duas, o que for."
João liga a consola e cantarola a música do PES 2008 - o inglês tem uma pronúncia escorreita de quem aprende a dar troco aos "how do you do" do hospital e das auxiliares que o metem a fazer gravatas e desenhos entre exames. Mete o Benfica a jogar contra o HJK Helsinki e em, vá lá, dois minutos, fica a perder oito zero. "Pai", grita, "como é que se muda a equipa?". Os pais estão sentados no sofá a olhar, lá em casa há a guerra sã entre jogos, telenovela, morangos com açúcar e telejornal. A vida deu uma cambalhota mas vai-lhes ensinando muito.
Um dia, ao almoço, Carlos Manuel chegou a casa. A mulher estava nervosa à frente da televisão. Tinha visto uma reportagem sobre uma criança portuguesa diagnosticada com progeria, doença que afecta uma em cada 8 milhões de pessoas e provoca envelhecimento prematuro. Tiveram quase a certeza. Foram a Lisboa ao Hospital Dona Estefânia e voltaram com "as estatísticas" às voltas na cabeça: cada ano de João valia por sete e a sua esperança de vida é de 15.
Estima-se que as doenças raras afectem 600 mil a 800 mil portugueses. No mundo, são conhecidas 7200 e todas as semanas surgem cinco novas. A doença de João é das mais raras mas é conhecida desde o final do século XIX. Ele sabe tudo, até já foi ver imagens de outras crianças na internet, as piores que trazem as lágrimas aos olhos do pai e que a mãe não suporta ver. Na semana passada foi operado aos pés. Tirou o gesso e os ferros na sexta e anda pela sala às turras com a irmã Maria, os dedos engelhados e amarelos de betadine.
"Só ficámos a saber o que eram as doenças raras nos Estados Unidos", conta Sónia. Em seis meses conseguiram uma vaga num ensaio clínico no hospital pediátrico de Boston e João tem ido fazer exames e tratamento de seis em seis meses; a última vez, em Novembro. "São 43 crianças. Ele e outra menina são os que têm tido mais resultados", sussussura a mãe. Não acredita na cura mas sente que está a adiar. "Já me disseram que se não fossem os comprimidos..."
Não têm de pagar pelo tratamento. Mas as contas não param de crescer, com cremes, fraldas, alimentação. Sónia, 37 anos, ficou com 205 euros de uma reforma por invalidez e o pai, a mesma idade, não recebe há quatros meses numa fábrica da zona, fora os subsídios por pagar. "Se ele sai à rua com este fato de treino todos comentam que é o faísca", lamentam o meio pequeno. Não é por não ter dinheiro para comer, é por não ter dinheiro para dar a melhor vida ao filho. "De há três anos para cá temos suportado tudo. Mas não temos ninguém que nos ajude a lidar com isto", diz o pai.
Sozinhos A solidão continua a ser comum para um doente crónico. Carmen Henriques tem 27 anos e só há dois percebeu que não era uma "aberração." Nasceu com nevo melanócitico congénito gigante, uma malformação na pele que lhe cobria o corpo de sinais e pelo. Foi seguida na Estefânia mas os médicos acharam que não deviam remover o nevo quando era pequena. Ainda assim, tiravam alguns sinais. Ela pedia sempre "doutor porque é que não tira logo cinco ou seis?", lembra. O médico dizia, preferes uma cicatriz ou uma pintinha e Carmen retorquia: "Eu não tenho uma pintinha, tenho mil".
"Depois dos 12 anos as operações passaram a ser consideradas estéticas", diz. Com um seguro, encontrou uma médica que se dispôs a chamar tumor benigno aos sinais mais incómodos para conseguir as operações, mesmo que nenhum dos sinais de Carmen tenha degenerado em cancro. O couro cabeludo de Carmen ainda está coberto do nevo. Usa uma prótese desde que o cabelo ficou branco e caiu. "Fui operada pelo Dr. Gentil Martins. Ontem encontrei-o e disse-lhe isto da prótese e ele não sabia que o cabelo caía. Operam-nos e nunca mais nos vêem."
A doença só começou a fazer sentido quando, em 2008, conheceu Rosa, avó de uma criança com a mesma doença. "As coisas não mudaram", conta a fundadora da Associação Nevo Portugal. "Quando a minha neta nasceu deram-na vestida à mãe e ''nevo melanócitico congénito gigante'' escrito num papel." Chegaram a casa e foram procurar na internet, depois foram em busca de um especialista. A criança está a ser vista por um médico francês, às custas da familia, embora haja comparticipação. Para Carmen fazer o mesmo teria de pagar do seu bolso e nem vale a pena lembrar-se do orçamento. Em dois anos, a associação conseguiu encontrar 37 casos em Portugal, completamente perdidos. "Quando era miúda pensava que quando tivesse 20 anos já iria ter ultrapassado isto. Há uns tempos estava na praia e passaram uns miúdos que me chamaram dálmata. Isto não é so estética. Devíamos ter um psicólogo logo nas primeiras operações."
Lara Neves tem uns olhões azuis e uma doença rara com apenas dois casos em Portugal. Chama-se Síndrome da Sinostose Espôndilo-Carpo-Tarsal e é também uma malformação congénita que lhe cola as vértebras. "No raio-x a coluna é um s", conta a mãe, Véronique Neves, de Mira. Tem quatro anos e a altura de uma criança de dois e meio. "Ela não sente, insiste só que é grande. Na escola os outros meninos acham que é pequenina." Veronique é enfermeira e estava sensibilizada para as doenças raras. "Foi uma mutação, não há nada a fazer. Ela faz tudo, vai a natação, parece uma criança saudável. Mas quando crescer pode ficar corcunda." Ana Paula Inácio, de Beja, vive mais angustiada. Em 2008, a vida da sua mãe mudou numa semana. "Ninguém sabia o que era", conta. Maria dos Anjos, então com 64 anos, deixou de conseguir assinar, ganhou medo da água, deixou de se querer levantar da cama. O único resultado estranho nas análises foi o nível de anticorpos antitiroideus no sangue, que seriam a razão de uma inflamação no cérebro diagnosticada como Encefalopatia de Hashimoto, uma doença que afecta uma pessoa num milhão. Desde então, a solução encontrada foi a toma diária de 20 mg de cortisona. "Os médicos excluíram depressão, excluíram outras doenças auto-imunes mas, mesmo assim, nem todos acreditam neste diagnóstico. Só sei que se ela deixar de tomar cortisona pode entrar em coma." Sem lhes contar o que ia fazer, um médico tentou tirar-lhe a cortisona em Agosto e Maria dos Anjos quase perdeu a consciência, testemunha Ana Paula. Outro recusou-se continuar a seguir a mãe depois de Ana Paula, enquanto aguardava a consulta, ter voltado a dar um comprimido por dia à mãe em vez da dose dupla intervalada, quando, passado 24 horas, Maria dos Anjos já mal se aguentava em pé. "Uns médicos dizem para voltar ao patamar anterior da medicação quando alguma coisa corre mal, para este já foi admissível", diz. "Sinto falta de apoio. Corri muitos médicos e sinto sobretudo que faltam médicos a perceber de mais de uma especialidade."
Ana Flora Palminha nunca percebeu nada mas sempre acreditou nos médicos. O filho Ricardo, hoje com 19 anos, foi diagnosticado aos cinco anos com o síndrome Klippel-Trénaunay-Weber, que afecta o sistema vascular. Foi operado às pernas, aos testículos e ao coração. Agora querem tentar outro diagnóstico. "Sinceramente não sei nada, só que ele tem tido muitos problemas. Era umas coisas a seguir as outras: operava-se à perna e descobria-se um sopro no coração", brinca uma mãe mais descansada. A última operação a coluna fez com que o filho chegasse ao metro e oitenta. "Vão aparecendo as coisas e vamos resolvendo. Nunca ninguém me disse ele tem isto e, por isso, o que vai acontecer é isto e aquilo." Ricardo tem pesquisado a doença e já encontrou outro caso, de um rapaz com 13 anos. "A partir de agora não vou ter mais nada. Já dei muito trabalho", faz questão de dizer. "Se acontecer mais alguma coisa também estou pronto para tudo. Uma semana no hospital, duas, o que for."
João liga a consola e cantarola a música do PES 2008 - o inglês tem uma pronúncia escorreita de quem aprende a dar troco aos "how do you do" do hospital e das auxiliares que o metem a fazer gravatas e desenhos entre exames. Mete o Benfica a jogar contra o HJK Helsinki e em, vá lá, dois minutos, fica a perder oito zero. "Pai", grita, "como é que se muda a equipa?". Os pais estão sentados no sofá a olhar, lá em casa há a guerra sã entre jogos, telenovela, morangos com açúcar e telejornal. A vida deu uma cambalhota mas vai-lhes ensinando muito.
In: I online
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