sexta-feira, 16 de julho de 2010

"A minha mente tem a história que tem"

Lutou décadas contra a esquizofrenia - e acabou por vencê-la. Chama-se John Nash e é o génio matemático que inspirou o filme Uma Mente Brilhante.

A conversa não é o seu forte. Fala lentamente e com alguma dificuldade na articulação das palavras. Umas vezes hesita, outras responde ao lado. Por vezes demonstra um sentido de humor que não chega a sê-lo completamente - e que talvez nem o seja de todo.

A sua mente só pode ser brilhante - uma beautiful mind, como reza o título original da aclamada biografia que a jornalista Sylvia Nasar publicou em 1998, e que por sua vez inspirou, em 2001, o filme homónimo de Ron Howard, com Russell Crowe no papel principal. Só assim é que se explica a extraordinária história de John Nash.

Nascido em 1928 nos Estados Unidos, Nash doutorou-se em 1950 pela Universidade de Princeton com uma tese de apenas 27 páginas que viria revolucionar a área matemática da Teoria dos Jogos. O "equilíbrio de Nash", que ele definiu nessa altura, faz hoje parte do vocabulário corrente desta disciplina científica.

A partir de finais dos anos 50, Nash desenvolveu esquizofrenia paranóide. A sua vida familiar e a sua carreira como matemático (já era considerado um génio por alguns) foram tragicamente truncadas. Perdeu o emprego, divorciou-se da mulher, Alicia, foi hospitalizado, medicado e tratado à força. Tornou-se um espectro de si próprio. Mesmo assim, durante os raros intervalos livres de delírio, continuou a fazer matemática de grande qualidade.

Nos anos 1970, Alicia voltou a acolhê-lo em sua casa (mais tarde voltariam a casar) e Nash regressou a Princeton. Passava o tempo a gatafunhar misteriosos códigos numéricos nos quadros e tornou-se conhecido como o "fantasma de Fine Hall" (o edifício do departamento de Matemática). 
A partir de finais dos anos 1980, depois de 30 anos mergulhado nos delírios da esquizofrenia, começou a melhorar e em 1994 recebeu o Prémio Nobel da Economia. 

Nash esteve esta semana em Portugal para participar na 24.ª Conferência Europeia de Investigação Operacional, na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. Na segunda-feira à tarde, deu uma conferência na Aula Magna e, no sábado anterior, falou ao PÚBLICO sobre o seu singular percurso de vida e o seu trabalho científico passado e actual. 

Revê-se na personagem interpretada por Russell Crowe no filme Uma Mente Brilhante, de Ron Howard? A história do filme é próxima da verdade ou muito afastada dela?

O filme é uma ficção selectiva, mas não está completamente afastada da realidade. Alicia e eu fomos consultados - isso fazia, aliás, parte do contrato do filme. Portanto, eles tinham licença artística, mas isso não tornou a história completamente fictícia. 
Não diria que me revejo nele. O filme não diz absolutamente nada sobre os meus anos de formação, antes da minha chegada à Universidade de Princeton.

O seu contributo para a Teoria dos Jogos foi muito importante. O que é a Teoria dos Jogos?
A expressão "teoria dos jogos" é uma descrição popular. A mesma área científica poderia ter tido outro nome. A Teoria dos Jogos foi desenvolvida com a publicação de um livro [em 1947], por John von Neumann e Oskar Morgenstern, intitulado em inglês Theory of Games and Economic Behavior (Teoria dos jogos e Comportamento Económico), que se tornou muito influente. Mas Von Neumann já tinha publicado na Alemanha em 1928 - o ano em que eu nasci - um artigo intitulado Zur Theorie der Gesellschaftsspiele, que significa "jogos sociais". E antes disso, tinha sido publicado em França um artigo com théorie du jeu no título. Von Neumann também publicou uma nota [em 1928] na Comptes Rendus de l'Académie des Sciences onde falava de théorie des jeux. Foi assim que o nome ficou.

É algo que permite a modelização matemática de comportamentos sociais e económicos?

Sim, mas com a ênfase nas escolhas alternativas e na ideia de estratégia - uma palavra de origem grega que significa a escolha de uma política. Há estratégia no xadrez e noutros jogos. Pode haver uma estratégia no futebol. 

Só que, aí, as estratégias têm como objectivo fazer com que o outro perca.

É o que chamamos um jogo de "soma zero". Todos os jogos de entretenimento e desportivos são desse tipo. Também podem ser de "soma constante", com um certo benefício para ambos os lados, como a final de um Mundial de futebol - mas onde o vencedor beneficia mais do que o outro.

E também há jogos onde todos perdem...

Sim, são os jogos de soma negativa. Por exemplo, podemos imaginar uma situação em que uma prisão obriga prisioneiros a entrar num duelo onde apenas um irá sobreviver.

No filme, há uma cena onde a sua personagem está à procura da solução para o problema dos jogos ditos não-cooperativos. Estão num bar, há um grupo de raparigas e o protagonista percebe de repente que... 

Deixe-me interromper. A teoria dos jogos no filme não está nada bem apresentada. O argumentista não era um perito em teoria dos jogos. 

O seu contributo para a teoria dos jogos é hoje conhecido como "equilíbrio de Nash" e mudou a maneira de fazer teoria dos jogos aplicada à economia. O que é o equilíbrio de Nash?

O equilíbrio de Nash define-se em termos de estratégias, do conceito de estratégia do jogador. Temos dois, três ou mais jogadores. Cada jogador tem um número finito de acções ou estratégias "puras" pelas quais pode optar, fazendo isto ou aquilo. Mas também existem estratégias mistas, que são planos baseados numa mistura de estratégias puras, em que uma certa probabilidade de ser escolhida é atribuída a cada estratégia pura. 
Assim, se um jogador tiver três escolhas possíveis, três acções puras entre as quais optar, poderá optar por uma delas com uma probabilidade de 20 por cento, pela segunda com 50 por cento e pela terceira com 30 por cento, o que dá 100 por cento. E o conjunto das estratégias mistas dos jogadores apresenta um equilíbrio quando nenhum dos jogadores pode mudar de estratégia e aumentar os seus benefícios. O benefício tem de ser calculável a partir da estratégia mista em questão. Calcula-se o benefício previsto para todos os jogadores e cada jogador olha para a sua fatia.

Quando duas empresas competem pelo mesmo mercado, usam a sua teoria para ver se compensa produzir mais ou menos, ou subir ou descer os preços?

Essa é considerada uma óptima área de aplicação da teoria. Existe uma abordagem clássica que é equivalente a uma análise de teoria dos jogos em certos casos especiais. É o chamado equilíbrio de Cournot. É um conceito certamente mais antigo do que o equilíbrio de Nash, mas é um caso particular. Augustin Cournot, economista francês do século XIX, considerou o caso em que duas empresas produziriam algo para o mesmo mercado - dois grandes produtores de leite, por exemplo. 
Se uma dada quantidade de leite é produzida, pode ser vendida por um certo preço; se produzirem mais, não vão conseguir vender o leite por um preço tão bom. Por outro lado, se produzirem menos, o preço sobe, mas também há um limite. E se produzirem muito pouco, pode ser preciso importar leite.
Pode então existir um equilíbrio de Cournot em que cada um deles produz uma certa quantidade do produto - e em que nenhum deles pode produzir mais ou menos e obter uma vantagem. Mas, aqui, trata-se de um jogo não-cooperativo com dois jogadores onde o equilíbrio reside numa estratégia pura.

No caso do equilíbrio de Nash, as estratégias são mais complexas...

Podem ser mistas. Por exemplo, se os produtores produzirem produtos diferentes [para o mesmo mercado], podem ter uma estratégia secreta - podem decidir que, durante um ano, só vão produzir uma certa quantidade desse produto. Podia ser a Apple a decidir produzir uma certa quantidade de iPods ou de Macintosh. O outro lado pode não conhecer o plano, mas precisa de ter um plano em que preveja o que pode acontecer - e pode tomar uma decisão ao acaso, de última hora, para surpreender os rivais.

E em casos deste tipo, você provou que também existe uma situação de equilíbrio, que é calculável?

Há um equilíbrio desde que se consiga determinar a função [a fórmula matemática] que determina os benefícios. Em princípio, é possível calculá-lo.

Existe software que as empresas usam para fazer este tipo de previsão?

Nem por isso. Existe há já uns tempos algum software de teoria de jogos, mas é mais útil do ponto de vista teórico. Há coisas que apenas são usadas ao nível do ensino académico.

Ou seja, a sua teoria é mais uma ferramenta para os especialistas do que uma ferramenta prática, concreta, para o mundo empresarial? 

Qualquer teoria, seja ou não económica, é em grande parte utilizada apenas ao nível académico. O que os responsáveis empresariais fazem na prática costuma ser algo diferente daquilo que aprenderam quando estudaram teoria económica. Quando uma pessoa se torna efectivamente um banqueiro, tem de tomar decisões práticas - e isso não é algo que se possa fazer utilizando apenas o que se ouviu e aprendeu nas aulas.

No que respeita à actual crise económica, houve claramente um descontrolo das bolsas, dos especuladores. Não poderia isto ter sido previsto a partir de teorias como a sua? Como é que não se previu o que ia acontecer?

Não é verdade que ninguém tenha visto o que ia acontecer. Existem muitos livros sobre pânicos e crises. Quando olhamos de perto para a História, vemos que este tipo de pânico é bastante frequente. Não há assim tanto tempo houve um pânico na Tailândia; afectou a Ásia por volta de 1999. E há casos extremos como o da Argentina. Um país é como um banco e pode ir à falência.

Contudo, a crise do sub-prime de 2008 parece ter sido uma situação em que as pessoas ficaram tão gananciosas que não se importavam com as consequências.

O facto é que não há investimento sem especulação. As pessoas que pensam estar a investir de forma conservadora podem na realidade estar a correr mais riscos do que imaginam.
Não me parece que possa haver capitalismo sem riscos nos investimentos. Investir sem riscos talvez seja possível numa situação de socialismo estrito - onde o Plano controla tudo e não pode haver bolhas especulativas. Isso poderia tornar a economia muito lenta.

Por que é que a sua teoria foi considerada pouco ortodoxa na altura em que a desenvolveu em Princeton?

Não consigo responder muito bem a essa pergunta. Depende da maneira de olhar para as coisas. É verdade que eu fui mais longe do que Von Neumann e Morgenstern. Mas não foi tanto o equilíbrio de Nash [nos jogos não-cooperativos] que foi considerado pouco ortodoxo, foi a minha teoria da cooperação aplicada aos jogos com duas pessoas, que é bastante diferente da ideia que eles tinham dos jogos cooperativos. 

Mais próxima da realidade?

A área dos jogos cooperativos é muito complexa. Eu não fui para além de dois jogadores (duas partes). Mas a área dos jogos com mais de duas partes constitui um desafio muito interessante. Aliás, é a minha área de investigação actual. As minhas ambições são algo limitadas, porque posso não viver para sempre [ri-se] e este tipo de teoria pode levar muito tempo a desenvolver.

Descida ao fundo da loucura

Lutou durante várias décadas contra a doença mental. Pode falar do que lhe aconteceu?

Fui diagnosticado como esquizofrénico. Tinha ideias delirantes e irracionais. 

Tinha alucinações visuais?

Não. Algumas formas de delírio são menos comuns do que se poderia pensar. É o caso das alucinações visuais. Podem acontecer, mas são raras na esquizofrenia. Isso surge no filme porque a mãe do argumentista tinha problemas psiquiátricos. E, de facto, ilustra muito bem a natureza do pensamento delirante. 
Quanto às ideias da conspiração e dos russos, das mensagens em código, algumas dessas coisas correspondem efectivamente ao meu padrão de doença. A ideia de ser capaz de ler mensagens secretas nos jornais, esse era o tipo de pensamentos que eu tinha. Mas não tinha alucinações visuais. Nunca tive um companheiro de quarto imaginário [ri-se].

Nos anos 1980, a doença começou a regredir. Sente-se limitado pela forma racional de pensar que recuperou?

Quando as pessoas têm ideias delirantes, isso pode aumentar a sua auto-estima e fazê-las sentirem-se melhores. No meu caso, os meus pensamentos acentuavam a minha importância. Tinha um ideia imaginária de quão importante eu era em relação à sociedade. Mas era uma importância secreta [ri-se], algo que não costumava ser publicado nem reconhecido.

Pensava que estava a salvar o seu país de uma conspiração comunista?

Isso é o filme. Não era o que eu pensava. Eu não era nacionalista. A minha ideia de ser importante correspondia mais a ser alguém como o Dalai Lama ou o Papa.

O génio científico anda de mãos dadas com uma certa peculiaridade de pensamento?

Esse é um terreno perigoso. Newton, por exemplo, desconfiava muito dos outros e, a dada altura, parecia psicótico em relação a alguns temas. Nunca foi casado, teve uma vida invulgar e fez experiências de alquimia. Também tinha escritos sobre a religião e as ideias religiosas que eram em parte convencionais para a época, mas também bastante impróprias. Mas quem pode dizer exactamente o que são a doença e a saúde mental?

Continua a fazer algum tratamento?

Não. Fui tratado contra a minha vontade quando estive hospitalizado. É difícil saber se há uma recuperação total quando a pessoa está a tomar medicamentos. Pode ser que haja muita gente em recuperação no mundo que toma pequenas quantidades de remédios quando na realidade não precisa de tomar nada. E que funcionaria melhor se não os tomasse. Mas depende do tipo de medicamento.

Sempre recusou as hospitalizações.

Não há hospitais psiquiátricos bons. 

Como saiu da doença?

Eu não aceitava a ideia de ser doente mental. Pensava que o meu delírio era em parte verdade. Em termos políticos em particular. Mas, a dada altura, comecei a rejeitar algumas áreas do pensamento político, em particular as ideias políticas relacionadas com a China.
O meu pensamento político em relação à China tinha a ver com a existência de Taiwan, Hong Kong e Macau, que os portugueses conhecem bem [ri-se] - com Taiwan em especial. Aquilo era bom, era mau? Eu elaborava ideias, imaginava coisas, conceitos secretos.

E rejeitou essas ideias.

Achei que era muito difícil pensar sobre a China, que não conseguia ter boas ideias. E a dada altura percebi que era possível pensar em termos mais simples, em termos de valores humanos. Eu não era capaz de reflectir sobre matérias essencialmente políticas - e, por isso, seria mais lógico não pensar nas políticas. E comecei a deixar de pensar em todo o tipo de ideias políticas que pudessem estar baseadas em conceitos imaginários.

Deixou de preocupar-se com elas?

No fundo, acabei por perceber que eu não tinha nenhuma importância política. O Dalai Lama pode ter alguma importância política, mas eu... [ri-se].

A sua importância situa-se a outro nível.

Sim. De facto, também comecei a ver algumas referências interessantes ao meu trabalho na literatura científica - a ver o equilíbrio de Nash mencionado com muita frequência. Vi o meu nome ligado a isso, o que me estimulou a pensar mais em termos da minha história científica.

E começou novamente a trabalhar.

Não foi assim tão simples, mas, em 1995, na sequência do Prémio Nobel, deram-me um gabinete e um cargo de senior research mathematician na Universidade de Princeton, que ainda hoje mantenho.

Qual é o objectivo da sua investigação actual?

Estou a trabalhar numa nova abordagem da teoria dos jogos cooperativos, que tem a ver com a ideia de evolução natural, de evolução da cooperação.

E vai publicar alguma coisa em breve?

Já tenho uma publicação e é disso que trata a minha conferência em Lisboa. E há mais para vir, se viver o suficiente e dependendo da rapidez com que as coisas avancem. Talvez volte a ter pessoas a trabalhar comigo, no âmbito de um projecto científico patrocinado pela National Science Foundation (NSF) que já foi oficialmente aprovado. Actualmente, trabalho sozinho, mas tive assistentes durante uns tempos, até à publicação do último trabalho.

Acha-se livre da esquizofrenia?

Estou livre de sintomas diagnosticáveis. A minha mente tem a história que tem, mas não estou louco. Não pertenço a um asilo de lunáticos.

Sem comentários:

Enviar um comentário