sexta-feira, 12 de março de 2010

Bullying: fenómeno camuflado

A história de Leandro, o menino que se atirou ao rio Tua supostamente por estar cansado das agressões dos colegas da escola, colocou o bullying no centro das atenções. As escolas têm dificuldade em lidar com este problema e há investigadores que defendem uma campanha nacional de sensibilização.

Leandro tinha 12 anos, frequentava a EB 2,3 Luciano Cordeiro em Mirandela, e lançou-se ao rio Tua supostamente por ter sido vítima de bullying, agressões físicas e psicológicas de forma continuada e repetida, por parte dos seus colegas de escola. O alegado suicídio da criança chocou o país e o debate sobre a violência no interior dos portões da escola reacendeu-se. O que é necessário fazer? Justifica-se uma estratégia nacional? O Ministério da Educação deve definir regras para combater estas situações? As escolas estão preparadas para lidar com estes casos? Como devem ser tratadas as vítimas de bullying? Qual o acompanhamento a dar aos pequenos agressores? E qual deve ser o papel dos pais?

A história é demasiado triste. Leandro será a primeira vítima mortal de bullying. O Jornal de Notícias conta o episódio pela versão assustada do primo. Christian tem 11 anos e nesse dia viu Leandro a ser espancado por dois colegas mais velhos no recreio da escola. Não era a primeira vez que isso acontecia. Há cerca de um ano tinha estado internado no Hospital de Mirandela, depois de ter sido pontapeado na cabeça por colegas da mesma escola. Leandro terá dito que estava cansado e atirou-se ao rio. Não conseguiram salvá-lo. No fim, Christian deixa uma frase que resume uma realidade demasiado cruel: "Na escola todos batem em todos." O corpo de Leandro ainda não foi encontrado.

O Conselho Executivo da EB 2,3 Luciano Cordeiro remeteu-se ao silêncio. Elaborou um relatório interno que não foi totalmente conclusivo e a Inspecção-Geral de Educação está a recolher mais dados e a ouvir testemunhas para entender o que aconteceu. Os alegados agressores foram entretanto identificados e estão a ser acompanhados por um psicólogo da escola. A Direcção Regional de Educação do Norte abriu um inquérito para apurar o sucedido e quer ouvir mais gente para tentar refazer a história. O presidente da Associação de Pais garantia que Leandro não estava sinalizado e que não havia registo de episódios de bullying na escola. A família da criança desmentiu as afirmações, assegurando que já tinha ido à escola falar do assunto e que, até ao momento, nenhuma medida tinha sido tomada. A dor mantém-se.

O debate reacendeu-se e várias questões vieram à tona: 11% dos alunos inquiridos na EB 2,3 Luciano Cordeiro garantiam ter sido vítimas de agressão por parte dos colegas mais do que uma vez, segundo um estudo realizado pelo Programa de Saúde Escolar do distrito de Bragança no ano passado, com a colaboração da Universidade do Minho. Um estudo que envolveu 3891 crianças do 1.º ao 6.º anos.

A Universidade do Minho tem mais números a destacar: 13,5% dos jovens dizem-se vítimas de bullying, um em cada dois não pede ajuda, e 12,5% afirmam-se como agressores. O Departamento de Psicologia de Educação da Universidade do Minho estudou o fenómeno da violência nas escolas em 2008 e 2009 junto de 1400 jovens de 17 escolas do 3.º ciclo e do Ensino Secundário de Lisboa e Braga. O estudo revela ainda que o medo de represálias é o principal motivo para que as vítimas de bullying continuem em silêncio.

Há sinais que podem ajudar a perceber que algo de estranho se passa. Tristeza, agitação, instabilidade e insegurança são alterações comportamentais que podem indiciar bullying. Queixas de dores, pesadelos, enurese nocturna, dores de cabeça ou de barriga na véspera de regressar à escola são sinais psicossomáticos. Danos na roupa, no corpo ou no material escolar, bem como a perda constante de objectos são também indícios a que convém estar atento.

Estratégia nacional

Para Sónia Seixas, subdirectora da Escola Superior de Educação de Santarém e investigadora do fenómeno do bullying, justifica-se uma estratégia de âmbito nacional para combater essas situações e, por outro lado, as escolas devem tentar resolver caso a caso. "Uma estratégia nacional de carácter generalista, que caracterize os comportamentos de bullying e apresente exemplos de boas práticas, é sempre um excelente ponto de partida e de referência para o genérico das escolas, onde inclusivamente se podem retirar pistas de actuação." Um começo em que a exequibilidade das propostas ficaria ao critério de cada estabelecimento de ensino.

O Ministério da Educação deveria definir regras que servissem de guia a todas as escolas no que se refere ao bullying? "Não diria regras, uma vez que estamos a falar de algo que possa servir de guia. Mas um documento que apresentasse um conjunto de sugestões (não demasiado estruturadas) que, essas sim, pudessem servir de guia. As sugestões poderiam variar entre aspectos como a existência de um regulamento em cada escola (onde os comportamento de bullying fossem incluídos), a supervisão dos espaços escolares (sob diferentes formas possíveis), modalidades de apoio especializado direccionadas aos alunos, oferta de workshops formativos neste domínio, etc.".

Sónia Seixas refere que as escolas têm os meios essenciais para intervir nos casos de bullying, mas que não se sentem preparadas por falta de recursos humanos e disponibilidade mental para se dedicarem a esses assuntos. Por falta de conhecimento das características do fenómeno, como ele se manifesta. Mas também por falta de tempo. "Ainda que por vezes não se apercebam, as escolas detêm os meios essenciais para intervir neste âmbito com sucesso, mas para que seja viável conceberem e implementarem estratégias de intervenção, necessitam, por vezes, de alguém que as ajude a melhor clarificar este fenómeno e a identificar possíveis linhas de actuação", sublinha. Actuar numa realidade preocupante, até porque "os níveis de incidência parecem manifestar uma tendência evolutiva acentuada e porque as repercussões para a saúde (do ponto de vista biopsicossocial) dos alunos envolvidos são significativas, nalguns casos assumindo contornos de grande gravidade".

Tânia Paias é psicóloga clínica e coordenadora do Portal Bullying, lançado no início de Fevereiro, inteiramente dedicado ao fenómeno em www.portalbullying.com.pt. Um espaço para fazer perguntas, tirar dúvidas, falar com técnicos e muito visitado. "Em primeiro lugar, permite um esclarecimento das questões gerais associadas ao bullying - com artigos, sinais de alarme, etc. -, mas essencialmente permite que cada pessoa possa colocar as suas questões e que estas sejam esclarecidas, em tempo real (quando o chat está online) ou por e-mail". Há também apoio psicológico disponível. "Um espaço de partilha do sofrimento daquele que é vítima e que, a partir daí, o próprio ganhe confiança e competências para poder fazer algo para mudar a sua situação. Em conjunto são pensadas formas e estratégias para mudar", acrescenta. Um portal que oferece vídeos que podem ser trabalhados nas escolas e pelos pais.

Tânia Paias defende que as escolas devem apostar em programas de cidadania para incentivar o respeito por cada um. E devem ter um papel activo na abordagem do bullying. Daí a necessidade de programas de prevenção que se foquem nas questões da convivência, cidadania e ajudem a perceber as implicações emocionais de determinados comportamentos. "É necessário dotar os agentes educativos de competências para lidar com estas situações e que saibam perceber o que faz parte da adolescência e o que são actos nefastos para o salutar desenvolvimento", destaca.

Em seu entender, as escolas ainda têm alguma dificuldade em lidar com o bullying. Porque a maioria das situações ocorre no recreio que normalmente está pouco vigiado. O que fazer? Trabalhar as questões emocionais. "É necessário, no caso das vítimas, repor os níveis de auto-estima e ensinar-lhes a serem capazes de dizer não, de conseguirem arranjar competências internas que possam fazer face às dificuldades com que se vão deparando." No caso dos agressores, a psicóloga defende que é preciso ensinar-lhes competências sociais, de partilha, de cidadania. "Dependendo do tipo de agressor, mas o que normalmente está por base é uma necessidade de se impor, por oposição às suas próprias dificuldades internas. É necessário ensinar-lhes a canalizar a agressividade para conteúdos mais saudáveis." E os pais devem estar atentos ao que se passa na escola, falar com os professores, ter um papel activo. "Entrarem numa lógica de escuta activa, disponibilizarem-se para ouvir os filhos, aceder às suas frustrações e ajudá-los a adquirir competências para fazerem face às contrariedades em meio escolar", observa. Tudo isso, mas dando competências aos filhos. "A superprotecção é considerada como um factor de risco", alerta.

Alcance do problema

Isabel Macedo Pinto, psicóloga, investigadora e professora da Faculdade de Psicologia da Universidade do Porto, considera que o bullying começa a tomar proporções preocupantes. "Estima-se que uma em cada sete crianças sejam vítimas de bullying pelo menos uma vez por semana na escola, e a maior parte das crianças já passou pela experiência." Algumas conseguem reagir de forma adequada, por características pessoais ou porque têm um bom sistema de suporte. Outras não conseguem ultrapassar essas situações, o que mexe com a auto-estima e atitude perante a escola.

Na opinião da psicóloga, as escolas têm os recursos adequados para detectar problemas de violência entre alunos e tomar medidas. Para isso, é necessária autonomia para apurar responsabilidades. "As medidas disciplinares podem e devem ser usadas no caso de circunstâncias concretas e deverão estar previstas nos regulamentos das escolas." "Uma atitude preventiva é sempre adequada, mas é importante reconhecer a existência do problema e o seu alcance", acrescenta.

Isabel Pinto considera importante as escolas investirem em actividades para a promoção da saúde física e psicológica dos alunos. "Programas de tutoria com pares, desporto escolar, grupos de interesse, desenvolvidos e orientados por profissionais competentes, podem ser alternativas interessantes, que ocupam os alunos nos seus tempos livres e lhes abrem novos interesses e perspectivas de vida", refere.

"As crianças sentem medo e não querem ser apelidadas de queixinhas ou de menino-da-mamã, por isso não querem que os pais saibam ou tomem medidas.". Por isso, o acompanhamento psicológico é fundamental. Directamente com a criança ou indirectamente com os pais ou professores. Isabel Pinto deixa um alerta: "A agressividade manifestada por algumas crianças, e que as leva a praticar actos de bullying, está muitas vezes relacionada com a falta de competências parentais e a existência de modelos inadequados em casa." A formação de pais pode ser aqui um recurso essencial.

Tito de Morais, fundador do projecto MiúdosSegurosNa.Net, olha com tristeza o que se passou em Mirandela e defende que os pais e encarregados de educação devem fazer parte das associações de pais dos seus filhos, para que não se afastem da escola. Para que saibam o que lá se passa. Em seu entender, as escolas estão mal preparadas para lidar com o bullying. "Não só as escolas não dispõem de um diagnóstico, como não dispõem de procedimentos como lidar com a questão quando as situações são reportadas. Urge um plano nacional de combate ao bullying e à violência em contexto escolar, que poderá passar por assinalar anualmente nas escolas a semana de sensibilização sobre o bullying".

Apesar de tudo, Tito de Morais garante que não é complicado lidar com o bullying. "Basta querermos e estar de olhos, ouvidos e coração abertos.". E que a comunidade educativa se mexa. "Se cada escola fizer uma pesquisa de diagnóstico anual, mediante um questionário, à sua comunidade educativa (alunos, pais e encarregados de educação, professores, educadores e restante pessoal), estará a proporcionar à mesma uma oportunidade de se manifestarem anonimamente, ficando com testemunhos de vítimas, agressores e testemunhas que darão uma ideia da dimensão e características do problema na escola", sublinha. Com esse diagnóstico, a escola pode então implementar um plano de combate e prevenção do bullying, que envolva a comunidade escolar e seja revisto todos os anos.

Ana Maria Almeida, do Departamento de Psicologia da Educação da Universidade do Minho, também defende uma campanha nacional de sensibilização para o fenómeno da violência escolar, uma estratégia concertada. "As pessoas estão especialmente atentas ao caso de Leandro e esta é uma oportunidade para que percebam que este não é um problema de Mirandela, nem daquela escola em particular. Em todas as turmas de todas as escolas há vítimas e agressores e é urgente generalizar os programas de prevenção", disse ao jornal Público. Entretanto, a Federação Regional de Lisboa de Associações de Pais sugeriu a criação de um projecto para colocar animadores nos recreios das escolas, como forma de combater a violência entre os alunos.

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