sábado, 18 de setembro de 2010

As novas escolas só não têm terra para jogar ao berlinde


Foi o polémico fecho das escolas do 1.º ciclo que ditou a transferência de milhares de alunos para os novos centros. Um processo que sobressaltou pais, indignou autarcas e ateou críticas ao poder central, por despovoar as aldeias e levar as crianças para longe de casa, onde passam todo o dia. Mas que, salvo críticas pontuais, se foi pacificando assim que as rotinas se instalaram. O DN foi conhecer três centros, dois em Trás-os-Montes (Freixo de Espada à Cinta e Carrazeda de Ansiães) e um em Pombal. 

Fátima solta a mão da mãe, despede-se com um beijo rápido e embarca no autocarro. Lá dentro já se instalou Rosinha, as irmãs, e meia dúzia de crianças que seguem para o centro escolar em Freixo de Espada à Cinta, onde está também a escola do 2.º e 3.º ciclos. Hoje, o transporte não pôde ir buscá-las ao centro de Lagoaça, pois a festa da aldeia plantou um palco no largo, impedindo a manobra e a recolha dos alunos. As festividades mais aguardadas do ano reflectem-se também no rosto sonolento de quem entra de mochila às costas e nos lugares que ficam vazios. "Muitos nem aparecem. Os professores já sabem que é assim", explica Sérgio, o funcionário da autarquia que leva e traz os meninos de casa à porta da escola.

São 08.20 do primeiro dia de aulas a sério. Mas Fátima, 10 anos, segue tranquila, sem medos. Apesar de ter ainda 24 quilómetros de curvas pela frente e de saber que vai passar o dia todo longe de casa, já não sofre os terríveis enjoos que a faziam vomitar diariamente e até obrigaram a mãe a comprar uma pulseira para o enjoo. Na escola da vila também já se habituou à sopa do refeitório.

Há quatro anos, quando foi dada ordem de encerramento à escola de Lagoaça, Fátima percebeu que não ia fazer a primária no mesmo local das outras crianças da aldeia. Aí já só havia 11 alunos e uma turma única do 1.º ao 4.º ano, o que prejudica a aprendizagem, dizem os especialistas. Mas a mãe foi das que aderiram ao boicote e saiu à rua em defesa da escola. Nesse ano houve um forte impulso ao reordenamento da rede escolar. Estavam reunidos os mesmos argumentos que levaram agora ao fecho de 700 escolas.

"As pequerruchinhas começaram a ir para tão longe com seis anos. Já viu, coitadinhas...", recorda Marília Caldeira, que considera que a aldeia tinha dimensão para manter a escola. Hoje, a polémica está pacificada, garante, recebendo o olhar de concordância de Sérgio, que ainda se lembra de como iam "aterrorizados" os mais novos naquele primeiro ano. "Depois, ela aprendeu com as outras. E hoje está mais do que habituada", remata a mãe. De passagem, o presidente da junta de freguesia, impulsionador do protesto, acrescenta: "Discordava da falta de condições e segurança no transporte. Tudo se resolveu."

No autocarro encarnado e branco, Rosinha é das poucas meninas - das quatro de Lagoaça a frequentar o 1.º ciclo - que hoje vêm à escola. Ao contrário das irmãs, Lizandra, no 4.º ano, e Fátima, no 6.º, já não estudou na aldeia e foi logo para Freixo, onde sonha estudar para professora. Só regressará a casa às 18.00. "Quando sair, se ainda tiver tempo, vou brincar e andar de bicicleta. Senão faço só os deveres", diz, envergonhada.

Jorge, com 11 anos e no 6.º, foi um dos que viveram a mudança, logo após entrar para o 1.º ano, e recorda com saudade a escola antiga. "Depois dos deveres, ainda tinha tempo de jogar à bola. Agora, no Inverno, já é de noite..." "Foi um bocadinho difícil", confessa. Mas o que tem de ser tem muita força e, com isto, Jorge até ganhou aulas de Inglês e Ginástica. Afinal, só antecipou em dois anos o que era inevitável no 4.º ano: ir para Freixo.

Depois da sinuosa estrada para Mazouco, onde a escola fechou há cinco anos, e já a chegar à vila, perto das 08.45, Sérgio leva Rosinha pela mão até à professora Fábia, que dá aulas ao 2.º ano. Ao mesmo local chegam autocarros de Poiares e Ligares, freguesias também sem escola desde 2006.

Foi nesse ano que fecharam as quatro primárias que ainda resistiam no concelho e, juntas, não somavam 40 alunos. Tudo se concentra no Freixo. Como o centro escolar se ergueu na antiga primária da vila, e as obras não estavam concluídas na altura, as crianças das aldeias foram instaladas na Escola Básica 2/3. Há dois anos, mudaram-se todos para o requalificado edifício que ganhou mais três salas e turmas para cada nível de ensino. Mas não um refeitório, como tanto desejavam os pais.

"Aproveitámos a primária antiga, que não tinha capacidade para refeitório. Mas as crianças atravessam a estrada, com professoras e auxiliares, e demoram dois minutos a chegar à EB 2/3", explica Pedro Mora, vereador. Além disso, há outro conforto: salas melhores e aquecidas, biblioteca e sala de informática. A câmara paga o transporte e a alimentação dos deslocados, facilita acesso à piscina e disponibiliza espaço para as actividades de enriquecimento curricular. Uma factura de 170 mil euros anuais.

"É o que dá sermos os resistentes do interior. Temos de garantir as melhores condições", desabafa o autarca. Mas a medida também não é serena para alguém da terra que assiste a mais uma "machadada" na vida rural, e vê vingar o despovoamento do concelho que perdeu três mil pessoas em 60 anos. "O sucesso escolar melhorou. Mas é triste ver as aldeias a perderem tudo." 

O dia no centro escolar de Carnide

No quadro interactivo, Diana resolve o seguinte problema: comprar material escolar com dez euros. De costas para a turma que segue o exercício no manual escolar, a aluna de nove anos, no 4.º, explora as potencialidades desta ferramenta, enquanto a professora Odete orienta o resto da turma. "Carolina, agora pinta as maçãs amarelas", diz à aluna do 2.º ano, que partilha a sala de aula.

É no centro escolar de Carnide, no concelho de Pombal, que desde 2009 estão reunidos todos os alunos da freguesia do 1.º ciclo e do pré-escolar quando a escola velha de Carnide de Cima fechou. Este ano encerraram mais nove e arrancaram cinco novos centros escolares, com o apoio do Ministério da Educação. Seis porque já estavam prontos os centros, três por imposição da tutela e terem menos de 21 crianças. No de Carnide, apesar de já haver salas para todos os níveis, ainda não há crianças suficientes para quatro turmas. A professora Odete acumula dois níveis, numa aula com nove alunos do 2.º e onze do 4.º, e confirma que, além de exigir mais do professor, a concentração reduz o sucesso porque há sempre distracções.

Para Diana e os seis alunos do 4.º ano que vieram da escola de cima, a quatro quilómetros, a mudança não fez grande transtorno. E, entre as duas, é até difícil escolher a melhor. "A professora é a mesma, a turma também. Só mudou o edifício", conta, sublinhando que aqui há biblioteca, balneários, ginásio, cantina e recreio com baloiços e relva. "O quadro de giz não tinha o livro lá dentro como este. E se chovia e queríamos fazer ginástica tínhamos de pôr as cadeiras na borda", explica, recordando a animação. Aqui, os contras são o calor e o barulho nos corredores.

Na biblioteca, Tomás, também no 4.º ano, folheia um livro de História, enquanto os colegas navegam nos computadores. A sala, bem equipada e cheia de livros, agrada a todos. Da escola nova só tem uma reclamação: "Não tem sítio para jogar ao berlinde!" Filipa, Francisco, Guilherme, Alexandre e David, da aula da professora Maria José, também se mudaram em 2009, e sublinham que a outra escola era bem mais sossegada.

Curiosamente, não foi pela imposição da regra de escolas com mais de 21 alunos que encerrou a primária de Carnide de Cima e se avançou para o centro escolar. A iniciativa foi da junta de freguesia e a obra paga pela câmara. "A ideia começou pelo refeitório, porque as crianças almoçavam no salão paroquial. No Inverno, o almoço chegava frio", explica Eusébio Rodrigues, presidente da junta. Depois de várias alterações, optou-se por uma requalificação profunda, capaz de acolher os alunos do pré-escolar e 1.º ciclo da escola antiga. Lá a zona é muito mais sossegada e o edifício serve agora o rancho local.

O projecto colheu o imediato entusiasmo dos pais, explica Sofia Gonçalves, presidente da Associação de Pais, que presta vários serviços. "Já que passam tanto tempo aqui, ao menos que tenham as melhores condições", considera a mãe de Tomás e Eva, lembrando que no antigo espaço não havia salas de ATL, ginásio, nem local de refeições.

Numa primeira fase, a associação organizou o transporte das crianças que moram longe, através da aquisição de duas carrinhas. Depois apostou nas refeições, e hoje gere o ATL e as actividades de enriquecimento curricular. São cinco funcionárias que recebem alunos das 07.30 às 19.30 e permitem que os pais que trabalham nas fábricas os deixem antes das 08.00. Curiosamente, é no Nordeste transmontano que as escolas distam mais das aldeias. Mas é aqui que os alunos passam mais tempo fora de casa.

O transporte das crianças pelos inúmeros lugares do concelho é a principal dificuldade do reordenamento escolar, que é para continuar, diz Fernando Parreira, vereador da Educação. "Nos últimos 12 anos encerraram mais de 40 escolas. E aos seis centros escolares queremos juntar 11 ou 12. Aí teremos de fechar mais dez ou 20 escolas", afirma, convicto de que as duas mil crianças do 1.º ciclo saem a ganhar da mudança. A própria atitude dos pais mudou, diz. "Se antes eram contra o encerramento, agora querem melhores condições." Contudo, este complexo processo ainda não está harmonizado e há centros ainda só com três salas abertas.

O regresso a casa na aldeia do Tua

Na Foz do Tua, faltam 20 minutos para as 19.00 e o sol já desapareceu atrás dos montes que entalam o Douro. O dia escolar de Tânia está prestes a chegar ao fim. À saída do autocarro, junto à emblemática estação ferroviária, a mãe, uma vizinha e três jovens que já chegaram da escola aguardam numa cadeira da esplanada do café Calça Curta para saber como foi o primeiro dia do 4.º ano. "A comida foi carne com esparguete", diz Tânia sem dar grande importância, abanando-se ao som da música que vem a cantarolar.

A menina vive a 15 quilómetros do novo centro escolar de Carrazeda de Ansiães, para onde foi transferida este ano depois de a escola de Castanheiro ter fechado, bem como outras cinco que obrigaram à concentração de alunos na sede de concelho. A escola da sua aldeia já encerrou há quatro anos, quando o irmão Rafael andava na primária, por isso, serpentear a serra de autocarro e recolher alunos nas aldeias já não é novidade. Só mudaram os horários. Vai mais cedo e vem mais tarde. "Vai ser assim todos os dias? No Inverno vai ser bonito", diz Estrela Fernandes, a mãe, ao motorista que já deixou três meninos numa quinta e segue caminho.

Se pudesse escolher, era na escola nova que preferia estar, diz Tânia, que caminha junto à varanda que separa as casas do leito do rio. São dez minutos a pé, hoje acompanhados pela mãe porque é dia especial, até chegar a casa, onde ainda há tempo de ver televisão antes de jantar. Mas a opinião não é unânime. Ana, já no 8.º, andou na escola do Tua, na do Castanheiro e já mudou para a vila. "Gostava de ter ficado aqui até ao fim. Comia em casa, não havia tanta confusão."

É do caos instalado que se queixam os pais que esperam junto ao centro escolar às 17.30. Alguns jovens dizem não ter almoçado, porque os alunos da primária, que sobem até ao refeitório da escola dos grandes, tiveram de comer primeiro. Os pais, encostados à grade, aguardam que lhes passem os filhos para o lado de cá, enquanto os que seguem para as aldeias tentam encontrar lugar na carrinha de regresso. Para transportar quase metade dos 250 alunos para as aldeias, estão oito autocarros à porta do centro, com as auxiliares a procurar os meninos, numa confusão de pó, gritaria e fumo de escape. Um pai de etnia cigana aguarda pela filha numa carroça puxada a burro.

As críticas ao funcionamento do novo centro não se ficam pela voz de pais e alunos. José Luís Correia, presidente da autarquia, herdou o projecto e não lhe poupa reparos: a escassa e sombria área de recreio, a falta de refeitório e o acesso exterior, e de balneários. E lamenta que seja esse o destino das aldeias, já altamente marcadas pelo despovoamento. "Não quero ser pessimista, mas este é um mal que não queremos ver. Começou nas aldeias, vai passar para as vilas e depois para as cidades. Resta o litoral do País."

1 comentário:

  1. Consolido com essa realidade.O que se dizem mestre,diretores,ministradores os que ditam regras e fazem mudanças .Mudanças essas não para o aprimoramento,crescimento e sim levam o sofrimento,a angustia e falta de recursos,salvos esses que buscam soluções,cumprimentos d eleis na maioria das vezes aqueles que já passaram pelas arestas da vida.Devemos sim denunciar pessoas pagas com nossos tributos que passam pela vida sem deixarem marcas positivas e enaltecer aqueles que priorisam o bem comum.
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