William Golding (mais conhecido como o autor d'O Senhor das Moscas) escreveu estas linhas em Os Herdeiros (The Inheritors, 1955), um romance onde imagina o encontro, há dezenas de milhares de anos, de duas espécies de seres humanos. Uma mais evoluída (nós?), os "cara de osso", imberbes, erguidos, magros, com rituais e ferramentas mais complexos; a outra mais primitiva (os Neandertais?), peluda, robusta e ágil a trepar às árvores.
Uma das características mais salientes da estranha e maravilhosa narrativa de Golding é o número de vezes que recorre à palavra "imagem". Os Neandertais estão constantemente a "ter" imagens e a declarar que têm imagens (que portanto lhes pertencem) e a reflectir sobre essas imagens. Enquanto isso, as imagens, combinadas com o que vai acontecendo no mundo exterior e com a memória do passado, vão gerando emoções e sentimentos que geram outras imagens e orientam os seus actos, tanto exteriores como interiores. Estas personagens primitivas são seres perfeitamente conscientes do mundo e de si próprios, dotados de uma história pessoal e individual.
Os hipotéticos neandertais têm contudo alguma dificuldade em manipular ideias complexas - talvez um sinal de que as suas capacidades de memória ainda não desabrocharam totalmente. A tribo mais evoluída, essa, tem muito mais jeito para todos esses exercícios mentais (algo que o autor talvez quisesse sugerir quando abandona o uso da palavra "imagem", mesmo no fim, mal o relato passa a ser do ponto de vista dos "cara de osso").
Os humanos modernos tornaram-se mestres na produção de imagens mentais, na sua análise consciente e na análise, também consciente, dos sentimentos que elas provocam em nós. O nosso cérebro produ-las em contínuo e nem sequer quando dormimos conseguimos interromper o seu fluxo. Somos todos cineastas mentais natos.
As imagens são "a principal moeda da nossa mente", explica António Damásio no seu novo livro, intitulado O Livro da Consciência. E a palavra não se esgota apenas nas imagens visuais, mas aplica-se aos padrões, aos "mapas" neuronais auditivos, viscerais, tácteis e por aí fora, que o cérebro constrói em permanência. Nem os sentimentos fogem à regra: são igualmente imagens. Mais ainda, o nosso cérebro que é "viciado" na criação de mapas, também mapeia o seu próprio funcionamento, gerando imagens totalmente abstractas. "Estou convencido", escreve Damásio, "que os matemáticos e os compositores sobressaem neste tipo de criação de imagens."
Esse filme super-multimédia que vemos na nossa cabeça começa na nossa infância - e de facto, através das relações sociais, da cultura e da aprendizagem, remonta até muito mais longe no passado, quando ainda não tínhamos nascido. Mais ainda, conseguimos antecipar o futuro e agir sobre ele em nosso benefício, individual e colectivo. E mais mais ainda, sentimos que o filme é nosso e só nosso (e de facto, somos o público exclusivo do espectáculo da nossa mente).
Mas como é que lá chegámos? O que aconteceu no nosso cérebro que tornou a consciência possível?
Cérebro, mente, consciência
Como já aconteceu nos seus livros anteriores, as respostas que Damásio se propõe dar a estas perguntas só podem ser válidas se forem firmemente ancoradas na biologia. Afinal de contas, os neurónios que suportam a mente e a consciência são células vivas como as outras; afinal de contas o cérebro, com as suas várias subdivisões e as ligações nervosas entre elas que suportam a mente e a consciência, é a mente e a consciência. Afinal de contas, tudo o que se passa na nossa mente passa-se na nossa cabeça e no nosso corpo (where else?). "De entre as ideias apresentadas neste livro, nenhuma é mais importante do que a noção de que o corpo é o alicerce da mente consciente" escreve Damásio.O Livro da Consciência é a mais recente incursão neste território do célebre neurologista português (radicado nos EUA desde 1975 e figura de primeiro plano não só da comunidade internacional das neurociências, mas também, desde o seu O Erro de Descartes, de 1995, junto do grande público). O título original em inglês do novo livro, Self Comes to Mind, talvez seja mais sugestivo do que o da versão portuguesa, editada pela Temas e Debates/ Círculo de Leitores, que vamos poder ler a partir de hoje (o original só será publicado nos EUA e na Europa em Novembro).
Mas o que importa sublinhar é que o livro define um programa para a futura investigação nesta área. Damásio é o primeiro a admitir que ainda está longe de ter resolvido o mistério do que é a consciência humana (se é que alguma vez o poderá fazer), que está meramente a arranhar a superfície, que nem sequer tem uma teoria, mas apenas um "enquadramento" teórico da questão.
Mas acha que, apesar de haver quem considere a tarefa impossível, ainda é muito cedo para os cientistas desistirem de explicar o que é a consciência em termos rigorosos e testáveis através da experimentação. Tanto mais quanto, nos últimos dez anos, os avanços das técnicas de imagens médicas têm permitido visualizar de forma cada vez mais sofisticada, ao vivo e em directo, o cérebro de pessoas (com e sem lesões neurológicas) a realizar diversas tarefas - para ver qual a região do cérebro que entra em acção a cada instante. Essas manchas de cor nas imagens poderão ser apenas um eco longínquo do filme na nossa cabeça, mas têm muito para nos contar.
A quarta dimensão
Toda essa massa de trabalho científico teve como consequência, para o pensador atento, metódico, profundo que é Damásio, uma mudança radical das premissas do empreendimento. O estudo do aparecimento da consciência humana, explica no livro, já não pode ser encarado da mesma maneira que há dez anos. Tornou-se preciso contar a história da consciência humana de outra maneira - e, por vezes, virada do avesso.
Em primeiro lugar, acrescenta-lhe uma "quarta dimensão": a perspectiva da evolução das espécies. Para conseguir perceber como surge e como funciona a mente humana - e em particular a mente consciente - é preciso abandonar a ideia de que ela é única em todos os seus aspectos. É única nalguns, que não deixam de ser espectaculares (a cultura e as artes estão lá para o provar). Mas a mente nasceu nos organismos vivos muito antes de a espécie humana aparecer na Terra. A consciência não é o apanágio do cérebro humano.
"A evolução brindou-nos com diferentes tipos de cérebro", lemos, "no que diz respeito à mente e à consciência. Temos o tipo de cérebro que produz comportamento mas que parece não ter mente nem consciência, como, por exemplo, o sistema nervoso do Aplysia californica, [um] caracol marinho (...). Existe o tipo de cérebro que produz toda uma vasta gama de fenómenos - comportamento, mente e consciência -, de que o cérebro humano é, claro está, o principal exemplo. Há ainda um terceiro tipo de cérebro que produz claramente comportamento, é provável que dê origem a uma mente, mas em que o grau de consciência é problemático. É o caso dos insectos."
Há mesmo, segundo Damásio, uma série de animais que poderão, ao que tudo indica, possuir uma consciência rudimentar: "os lobos, os nossos primos os símios, os mamíferos marinhos, os elefantes, os felídeos e, claro está, aquela espécie especial chamada cão doméstico".O que lhe permitiu chegar a uma tal conclusão? "A organização dos seus cérebros e a sofisticação dos seus comportamentos sociais", responde-nos, numa troca de e-mail com o Ípsilon. E significa isso que esses animais são conscientes, tal como nós? Que sabem que existem? "Claro que a sua consciência não é tão abrangente como a nossa, mas penso que eles sentem as suas mentes e os seus comportamentos."
Mas então, como imagina o autor a mente de um cão "desde o interior"?, perguntámos ainda. Como "um fluxo muito rico de imagens situadas no presente, com uma leve penumbra de passado e nem a mais mínima ideia de futuro". Mesmo assim, todos sabemos isso, uma mente capaz de amar, de sentir tristeza, medo ou ciúmes... mas não de reflectir sobre a sua condição, não de saber que sabe o que sente.
Seja como for, uma consequência não trivial desta perspectiva evolutiva é que, desde os primórdios da vida na Terra, os cérebros, seja qual for sua sofisticação, sempre estiveram e permanecem dedicados em primeiro lugar à manutenção da integridade dos organismos que os contêm, humanos e não humanos. "A forma mais directa de explicar o motivo pelo qual a consciência prevaleceu na evolução é dizer que contribuiu de modo significativo para a sobrevivência das espécies com ela equipadas. A consciência chegou, viu e venceu", escreve Damásio no seu livro.
Os andares da consciência
Para o demonstrar, o cientista vai, por um lado, desmontar os diferentes sistemas e processos, de complexidade crescente, que culminam na consciência; e, por outro, especular de forma cientificamente informada sobre os locais no cérebro candidatos a ser o "lugar" onde cada um tem a sua sede principal (sem esquecer que o cérebro faz tudo de forma relativamente deslocalizada, o que também não significa que a totalidade do cérebro participe em todas as funções cerebrais; algumas estruturas são mais adequadas do que outras para o desempenho de uma dada função). A cada passo da construção (ou desconstrução), Damásio fornece uma profusão de provas baseadas na observação de doentes com problemas cerebrais muitas vezes trágicos - adultos com Alzheimer, epilepsia, coma, estado vegetativo, síndrome locked-in, crianças que nasceram sem córtex cerebral, a camada exterior do cérebro responsável por todas as funções cognitivas de alto nível a começar pela linguagem, lesões cerebrais maciças ou localizadas - e na de pessoas que não são doentes neurológicos. O seu conhecimento da anatomia do cérebro e a sua capacidade de interpretar sinteticamente os resultados da investigação (a própria e a dos outros), sempre em relação com essa anatomia, constitui um acto de autêntico virtuosismo. O que não significa que o seu livro seja de fácil leitura; antes pelo contrário. Seguir os meandros das explicações encadeadas de Damásio exige a concentração de um jogador de xadrez.
A construção da consciência começa pela formação de um "proto-eu", seguido de um "eu nuclear" e coroado por um "eu autobiográfico". Estes três módulos foram sendo acrescentados um por cima do outro ao longo da evolução e nós humanos possuímos os três, simplesmente porque não podemos prescindir de nenhum deles.
O proto-eu é uma semente, um germe primitivo do eu. A partir das imagens mentais que vêm do corpo, escreve Damásio, o proto-eu produz "sentimentos primordiais" (por exemplo, diversos níveis de dor e de prazer, o "sentir" de base), que são espontâneos e contínuos quando estamos acordados e que "garantem a experiência directa do nosso corpo vivo, sem palavras, sem adornos e sem qualquer outra ligação que não seja a própria existência". Ou seja, um primeiro sinal de que as nossas imagens mentais são nossas, ponto de partida indispensável da consciência.Cérebro arcaico
A principal consequência disto, segundo Damásio, é que a existência da consciência humana é assegurada em parte por sistemas muito "arcaicos" do cérebro, tais como certas estruturas da parte superior do tronco cerebral (o tronco cerebral liga a espinal medula ao cérebro). Isto não fazia até agora parte dos "ingredientes" habituais da consciência. "São muito poucos os cientistas com trabalhos publicados a defender esta ideia", diz-nos Damásio. No livro, escreve: "O cérebro não começa a edificar a mente consciente ao nível do córtex cerebral, mas sim ao nível do tronco cerebral. Os sentimentos primordiais não só são as primeiras imagens geradas pelo cérebro, como também manifestações instantâneas de consciência. São o alicerce que o proto-eu prepara para a construção de níveis mais complexos do eu." E acrescenta: "estas ideias estão em conflito directo com os pontos de vista tradicionais sobre a consciência".
Não é possível esgotar em poucas palavras a complexidade do pensamento de Damásio, mas podemos tentar alinhar os personagens e o enredo da peça da consciência. Além do proto-eu, existem mais dois participantes que completam o elenco da consciência: o eu nuclear (que se desenvolve "numa sequência de imagens que descrevem um objecto a interagir com o proto-eu e a modificá-lo") e o eu autobiográfico (que surge quando todas essas sequências de imagens de múltiplas origens, "cuja totalidade define uma biografia", geram por sua vez "impulsos de eu nuclear" e ligam o eu "ao passado bem como ao futuro antecipado"). O proto-eu, com os seus sentimentos primordiais, e o eu nuclear constituem um "eu material". O eu autobiográfico, que abrange todos os aspectos da pessoa social, constitui um "eu social" e um "eu espiritual".
Mas para realizar o estado de consciência plena - aquele a que só os humanos temos acesso - ainda falta no palco da mente "um dono, um protagonista da existência, um eu que analisa o mundo interior e exterior, um agente que parece a postos para a acção. Falta o narrador que não apenas sabe, mas que sabe que sabe, o "conhecedor" que permite atingir o mais alto patamar da consciência tal como a conhecemos hoje. São o eu nuclear e o eu autobiográfico que vão "dotar-nos a mente [desta] outra variedade de subjectividade", escreve Damásio. "A consciência humana normal corresponde a um processo mental onde operam todos estes níveis do eu".
Dez anos depois
Onde é que as etapas finais da construção da consciência se operam no cérebro? Onde é que se concretiza a subtil e complexa coordenação dos processos que permitem a sua emergência? Devido à sua posição no cérebro e as ligações nervosas que estabelecem com outras regiões, o tálamo, situado entre o tronco e o córtex cerebrais, e uma área do córtex chamada PMC (córtex postero-medial) recolhem o voto favorável de Damásio. Mas isso não significa que exista uma separação de funções: o cérebro não funciona assim. Cada uma dessas três principais "grandes divisões anatómicas" contribui para algum aspecto da "tríade directora" da consciência, formada pelo estado de vigília, a mente e o eu.
Perguntámos a Damásio o que, ao longo desta década, tinha tornado necessária esta sua nova viagem à consciência humana. "Muitas, muitas coisas", diz-nos por e-mail. E especifica que "embora tenha sempre reconhecido o valor das estruturas subcorticais, a perspectiva d'O sentimento de Si era predominantemente centrada no córtex. A d'O Livro da Consciência não é; o subcórtex e o córtex partilham os papéis - e o papel principal vai mesmo para o tronco cerebral." "Embora [no primeiro livro] também tivesse chamado a atenção para o córtex postero-medial, considerei-o como principalmente relacionado com o eu nuclear. Dez anos volvidos, com base em todos os resultados de neuroanatomia e neurofisiologia (...), vejo o seu papel como principalmente ligado ao eu autobiográfico. (...) Fiz ainda alterações teóricas a partir da reavaliação do comportamento das criaturas 'pequenas', das bactérias e por aí fora - e mais geralmente, daquilo que no seu conjunto descrevo como a quarta perspectiva.
E qual a maior novidade no novo livro? "É o que digo sobre o tronco cerebral e sobre a fusão, literalmente, do corpo e do cérebro, que são duas caras da mesma moeda. Este é sem dúvida um dos pontos centrais do livro - e talvez o mais original e o mais sujeito a controvérsia."